"É característica do filósofo esse estado de
ânimo: o espanto, porque outro não é o princípio da Filosofia; e aquele
que disse ser Íris (a Filosofia) filha de Thaumante (o espanto,
maravilha), parece que não estabeleceu mal a origem.", Platão, Teeteto,
155 d.
"O espanto sempre foi, antes como agora, a causa
pela qual os homens começaram a filosofar: a princípio, surpreendiam-se
com as dificuldades mais comuns; depois, avançando passo a passo,
tentavam explicar problemas sempre maiores, como por exemplo os que
giravam em torno dos fenómenos da Lua, do Sol e dos astros, e finalmente
os relativos à génese do todo (Cosmos, Universo). Ora, quem duvida e se
espanta, crê ignorar. E por isso, sob um certo aspecto, também o amante
do mito é filósofo: uma vez que o mito se compõem de coisas que
nos espantam.", Aristóteles, Metafísica, I,2.
Da Atitude Natural à Atitude
Reflexiva
"Já leste a história
do Pedro", perguntou Helena a Joana. Esta, limitou-se franzir a testa, mostrando o pouco
interesse que tinha pela mesma. Ouvira um resumo, mas
pareceu-lhe logo um perfeito disparate. Helena pelo
contrário achava-a fascinante.
Contava a história de um rapariga que
desde pequena tinha medo de tudo o que não conhecia. Era este o motivo
porque ao longo dos anos, procurou meticulosamente fazer sempre as mesmas coisas,
repetir os mesmos gestos, e até em manter as mesmas ideias. Esta atitude revelou-se duma
enorme vantagem: ela deixara de ter hesitações nas
escolhas, antecipadamente já sabia o que queria. Por
comodidade habituara-se também a acreditar em tudo o
que lhe diziam. Enquanto acreditava não precisava de
pensar. Quando inadvertidamente se via envolvida no
meio de uma discussão, ficava calada, ciente que as ideias que possuía eram as bastantes para viver. A
vida decorria sem imprevistos. Abominava a incerteza e as ambiguidades. As pequenas rotinas do dia-a-dia
davam-lhe uma grande segurança interior. Acabou por
deixar de pensar, limitava-se a viver como sempre
vivera, a acreditar no que sempre acreditara. É
certo que às vezes se sentia aborrecida, mas nestas
situações dormia. Se não tinha sono, entretinha-se
a ver televisão. Muitos anos depois, ao entrar em
casa, como desde criança fazia, tocou à campainha.
O som soou-lhe estranho. Uma dúvida instalou-se no
seu espírito, seria aquela a sua casa?. Numa sucessão
de gestos à muito mecanizados, limpou os pés num
tapete inexistente, meteu a chave à porta e entrou.
Abriu a caixa do correio. Começou a subir a escada,
mas esta pareceu-lhe infindável, sentiu-se sem forças
para prosseguir. Angustiada, sentiu um enorme vazio
à sua volta, nada parecia fazer sentido. Decidiu
voltar de novo à rua, olhou primeiro para o número
da porta e depois para a fachada da casa, confirmou
que não se enganara. Mas a distância a que se
colocara permitiu-lhe, pela primeira vez, reparar que
a casa ameaçava ruir a todo o momento. Sentiu-se
apavorada ao tomar consciência que vivia entre
escombros. O mundo deixara de lhe ser familiar. A
custo voltou a entrar naquela casa, mais estranha do
que nunca. Quando os vizinhos já temiam que algo de
grave lhe tivesse acontecido, saiu finalmente à rua.
A primeira pessoa com quem se cruzou, foi o talhante
do bairro, tendo-lhe perguntado: "Como se pensa
tudo de novo?. Como é que é o mundo? Como é que são
as coisas? E elas serão sempre da mesma maneira, ou
podem variar de acordo com o modo como são vistas e
apreendidas?".
Carlos Fontes
Foto: Greg
Rakozy
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