I. Ciência, Poder e Riscos
1. Saber e Poder
Tales de Mileto: A questão da utilidade do saber
"Foi o caso de Tales, quando observava os astros; porque olhava para o céu, caiu num poço. Contam que uma rapariga da Trácia gozou com ele, dizendo-lhe que procurava conhecer o que se passava nos céus, mas não via o que estava debaixo dos pés. Esta afirmação aplica-se a todos os que se dedicam à filosofia.", Platão, Teeteto, 174a
A resposta à questão da utilidade do saber é apresenta por Aristóteles (Política,1259,a) num outro episódio. Tales era censurado pela forma muito simples como se vestia, o que era interpretado como o sinal de pobreza, revelador da inutilidade do saber (filosofia). Numa altura de fracas colheitas de azeitona, alugou por um preço muito baixo todos lagares de azeite, os donos consideram que haviam feito um óptimo negócio. Acontece que ele previu que nesse ano haveria uma boa colheita de azeitona, e assim aconteceu. Foi a vez de Tales fazer um ainda melhor negócio, alugando os lagares por um preço muito elevado. Desta forma demonstrou que, se o sábio não enriquece é por que o não pretende.
Vanitas (vaidade), Frans Hals, 1626
O rei Salomão, no final da vida, deixou-nos uma reflexão sobre o saber humano que será repetida durante séculos: O saber é ilusão, vaidade, pois tanto os sábios como os tolos terminam na morte (Eclesiastes,1-2). Uma afirmação que nos remete para o sentido da nossa existência e o que fazemos da própria vida.
Cartaz da organização ecologista alemã Robin Wood
A ciência moderna trouxe consigo uma nova concepção de saber: o conhecimento científico tem por objectivo o seu domínio da natureza, de forma a poder instrumentalizá-la e explorar sem limites ao serviços dos interesses dos homens. No fim, como temos observado historicamente, o próprio objecto do conhecimento ( a natureza) é devorado (desaparece) neste processo, ao reduzir-se a realidade a uma dimensão material, uma mercadoria transacionável. No século XX a ciência associada à técnica - a tecnociência - tornou-se também num poderoso instrrumento de domínio e destruição dos seres humanos, concebendo e produzindo armas cada vez mais letais.
1.1. Fraudes Científicas
A atividade científica é uma atividade humana e como tal reflecte os seres que a realizam e a sociedade onde ocorre. A "vaidade", "ambição", "fama" ou o desejo da mesma, motivações "ideológicas" ou "religiosas", mas também interesses económicos em jogo, levam os cientistas a cometerem frequentes fraudes. Dado o prestígio que o conhecimento cientifico possui na nossa sociedade, muitas destas fraudes mantém-se durante largas décadas sem que alguém se atreva a denunciá-las.
Duas situações atuais muito comuns: industrias como a farmacêutica e a alimentar pagam a cientistas para fazerem estudos (ou simplesmente para assiná-los) que "confirmem" determinadas características dos seus produtos. Muitos outros publicam estudos cientificos encomendados para afectar o valor de certos produtos. A internet facilitou à escala global a apropriação indevida de resultados de investigação e plágio de estudos cientificos.
Discussão sobre o Crânio de Piltdown, de John Cooke (1915)
Crânio de Piltdown. Em 1912 dois reputados cientistas - Arthur Smith Woodward (paleontólogo do Museu Britânico) e Charles Dawson (arqueólogo) anunciaram ao mundo que haviam descoberto um antepassado perdido dos humanos, que aparentemente contrariava a teoria evolutiva. Ao hominidio foi inclusive dado um nome científico: Econthropus Dawsoni. Em 1953, de forma mais discreta, o Museu Britânico, anunciava que se tratou de uma monumental fraude.
Fósseis de Beringer. Fosséis descobertos em 1725 por Johann Bartholo Adam Beringer, decano da Faculdade de Medicina da Universidade de Wurzburg (Alemanha), publicados na obra "Lithographie Wirceburgensis (1726).
Arquelogia. Shinichi Fujimura, 2000 (Japão)
Clonagem Humana. Wuo Suk Hwang, 2005 (Coreia do Sul)
Cancro. John Sudbo, 2006 (Oslo, Noruega)
Estas e muitas outras fraudes científicas mostram-se que quem as faz procura não o saber, mas a fama a qualquer preço, serve-se da ciência para justificar convicções religiosas, políticas ou interesses económicos.
2. A questão dos Limites
A questão dos limites do saber humano tem uma longa história na cultura ocidental. Há coisas que estão proibidas aos humanos de realizarem. Se o fizerem arriscam-se a brutais castigos por parte das divindades.
2.1. Condenação Divina
Os homens não deviam procurar atingir o saber que só aos deuses ou a Deus pertence. Esta audácia, segunda Bíblia, custou a Adão e Eva a expulsão do paraíso. O diabo, disfarçado de serpente, levou-os a comerem o fruto proibido do Éden. A maçã, neste caso, pode simbolizar muita coisa, como o desejo carnal ou o conhecimento.
Adão e Eva (1628-1629), Pierre Paul Rubens
O Mito da Torre de Babel na Bíblia(Genesis, 11.3) retoma a mesma ideia. Os homens julgando-se iguais a Deus, resolvem construir uma torre tão alta que atingisse o Céu, morada de Deus. Depois de observar o que pretendiam fazer resolve castigá-los: Cria várias línguas para que entre eles não se entendessem.
Torre de Babel (1563), Bruegel, O Velho
O Mito de Dédalo, Talos e Icaro, representam também uma séria advertência aos que pretendem ultrapassar os limites humanos através do saber e da técnica. O resultado é a morte.
O Voo de Ícaro (1635-1637), Jacob Peter Gowy
2.2. A Vida em Nome do Saber
A história da ciência está repleta de pessoas que sacrificaram a vida para obterem o saber que procuravam. Nada os demoviam nesta procura, pois nada mais importante encontravam na sua existência.Devido a perseguições que muitos foram vítimas, a imagem do cientista durante séculos foi associada à de mártires, o que contribuiu para a "santificação " popular de muitos deles.Uma imagem frequentemente "fabricada" que está longe de corresponder à realidade.
- Arquimedes (287 a.C- 212 a.C). Segundo uma antiga lenda, quando os soldados romanos invadiram a Siracusa, encontraram Arquimedes a tentar encontrar a solução geométrica para a quadratuar do circulo. Instando a obedecer às ordens dos soldados, recusou-se a fazê-lo, porque o importante era o problema que procurava solucionar. Antes de ser morto, virou-se para o soldado dizendo-lhe: "mata mas não destruas."
- Hipatia (c.355-416)
- Frei Gil de Santarém. Conta a lenda que um jovem português, no século XIII, foi estudar para Paris, mas não terá ficado satisfeito com o que lá aprendeu, queria saber mais, muito mais. Julgou que esse conhecimento só o Diabo o podia dar-lhe. Dirigiu-se então para Toledo, onde numa caverna o Diabo o esperava. Decorrido um ano, o Diabo exigiu-lhe que fizesse um pacto de sangue, renunciando a Deus e dando-lhe a sua alma, tudo em troca do Saber, e assim o fez. Um outro casio semelhante é o de Johannes Georg Faust (1480-1540), médico, mago e alquimista. Segundo uma antiga lenda teria feito um pacto com o demónio para ter acesso ao conhecimento. Esta lenda deu origem a muitas obras literárias, sendo a primeira atribuida a Johannes Trithenius (1462-1516) e a mais conhecida o poema de Goethe.
- Antoine Lavoisier (1743-1794). Por haver questionado um tratado de química de Jean-Paul Marat, durante a Revolução Francesa, foi guilhotinado a 8 de maio de 1794.
- Marie Curie (1867-1934). Madame Curie realizou estudos pioneiros no domínio da radiotividade. Morreu de leucemia causada poela exposição à radiação, nomeadamente durante a 1ª. Guerra Mundial, em unidades móveis de raio-X.
- Yukata Taniyama (1927-1958). Após 31 anos de investigação para demonstrar o teorema de Fermat, entrou em profunda depressão que o levou ao suicídio.
- Dian Fosser (1932-1985). Assassinada no Ruanda
2.3. Observações e Experiências
O trabalho científico implica, em muitas áreas, observações e experiências que suscitam problemas de natureza moral, nomeadamente quando são envolvem seres humanos, e mais recentemente animais. O problema dos limites para estas investigações é uma questão que à séculos é debatida. Estes limites são frequentemente encarados como entraves ao livre desenvolvimento da ciência, como foi a questão da dissecação de cadáveres. O problema, como veremos, não é tão simples. Nem tudo o que pode ser experimentado o deve ser.
Estudos Anatómicos
- Mumificação. Os egipcios viram na mumificação dos corpos , um passo importante para viver bem numa vida após a morte. Neste sentido durante milhares de anos, investigaram os melhores processos de o fazerem, o que implicou também o importante conhecimento da sua anatomia. Os processos artificiais, desenvolvidos de forma sistemática a partir de 2.800 a.C., não deixaram de horrorizar pessoas de outras culturas e religiões para os quais tais atos eram repugnantes.
Vendedor de Múmias, Egito, 1875
- Andrea Vesalius (1514-1564) revolucionou o estudos da anatomia, fê-lo através de desenhos que realizou dos muitos cádavares que dissecou, nomeadamente de condenados à morte. Esta prática, considerada imoral e pouco digna por muitos dos seus contemporâneos, permitiu-lhe corrigir muitos erros sobre anatomia do corpo humano que persistiam desde Claudio Galeno (c. 129- c.217).
Electricidade (bioelectricidade)
Os estudos sobre a elctricidade estavam na ordem dia no séc. XVIII. São feitas várias descobertas e invenções, em que estiveram envolvidos Charles Fey (1698-1739), Luigi Aloiso Galvani (1737-1798), Alessandro Volta (1745-1827), Benjamin Franklin (1706-1790), Giovani Aldini (1762-1834) e outros. As experiências de biolectricidade de Galavani se horrorizam os observadores, não deixam de abrirem novas perspectivas para o conhecimento do conhecimento do funcionamento do corpo dos seres humanos.
- Giovani Aldini (1762-1834)
O médico escocês Andrew Ure, em 1818, faz uma experiência de excitação de um cadáver. Neste ano, Mary Shelley edita a obra Frankenstein.
- Andrew Ure (1778-1857), médico, especialista em química, mecânica, astronomia e muitas outras áreas, dedicou-se também a fazer experiência com cadáveres. Em 1818 comunicou que esteva a fazer experiência com um assassino (Matthew Clydesdale) acabado de ser enfcorcado. Acreditava que estimulando o nervo frênico, poderia restaurar a vida em casos de sufocação, afogamento ou enforcamento. Descreve deste modo a experiência:
" Quando o nervo supra-orbital era excitado, todos os músculos de seu semblante simultaneamente expressam medo; Raiva, horror, desespero, angústia e horripilantes sorrisos, manifestavam as expressões hediondas do rosto do assassino, superando as mais selvagens representações de Fuseli ou de um Kean. Nesse período, vários espectadores foram forçados a deixar o apartamento por terror ou doença, um cavalheiro desmaiou.
- Egas Moniz (1874-1955). Lobotomia.
......
- Vladimir Demikhov ( 1916-1998). Sugestão: https://www.youtube.com/watch?v=uvZThr3POlQ
- Stanley Milgram , Universidade de Yale (1963)
2.4. Cobaias Humanas
Multiplicam-se por todo o mundo, os relatos de seres humanos usados como cobaias, a maioria das vezes sem o seu conhecimento. Nestas experiências, as pessoas mais frágeis ou desprotegidas são as mais usadas. Em muitos casos, estão envolvidas instituições públicas.
Pacientes. Entre 1998 e 2000, em vários hospitais dos EUA, doentes recebiam um "substituto" artificial do sangue natural, criado pelo Laboratorio Northfield, o PolyHeme.
Crianças de um Orfanato. Estudo da gaguez, idealizado por Wendel John (patologista), da Universidade de Iowa (EUA), em 1939, executado por Mary Tudor Jacob .
2.5. Barbárie
A história da humanidade está repleta de sanguinários e de matanças. A novidade no século XX foi o empenho de cientistas na Alemanha sob o regime em realizarem experiências para exterminarem em largar escala seres humanos, mas não foi a única.
a) Fim da Ilusão. Desde o século XVII que os cientistas tinham sempre sido associados ao progresso da Humanidade. Na primeira Guerra Mundial (1914-1918) esta ilusão acabou tragicamente. Assistiu-se então à politização da ciência. Os cientistas das diferentes potências em confronto envolveram-se no "esforço de guerra", isto é, na descoberta das armnas mais letais que os seres humanos até então tinham criado. Cientistas alemães ao serviço da Bayer e Hoechst criaram um gás clorídrico, que usaram pela primeira vez em Abril de 1915, próximo de Ypores, na Bélgica, contra as tropas francesas. O impacto foi devastadora. A aortir daqui a corrida às armas químicas foi generalizada. Em 1917 começou a ser usado gás mostarda. Terminada a guerra a utilização desta arma foi internacionalmente proibida (1925), mas continou a ser usada até ao nossos dias.
Gaseados, pintura de John Singer Sargent (1918).
b) Métodos Industriais de extermínio. Engenheiros e cientistas alemães, desde finais dos anos 30 do século XX, que investigavam a forma mais eficaz de exterminar em massa seres humanos. De todos os campos de extermínio que foram criados, o Auschwitz foi o que se mostrou mais "eficaz" com as suas sete grandes câmaras de gás e os seus fornos crematórios. O testemunho de Rudolph Hess, comandante deste campo, pela descrição cientifica como a morte de seres humanos era encarada:
"Recebi ordens para organizar o extermínio em Auschwitz em Junho de 1941. Nessa época já existiam tres outros campos de extermínio no Governo Geral: Belzec, Treblinka e Wolzek. Visitei Treblinka para ver como é que eles faziam o seu extermínio. O comandante do campo disse-me ter liquidado 80.000 pessoas em seis meses. ocupava-se, sobretudo, a liquidar todos os judeus do gueto de Varsóvia. Utilizava o gás monóxico e eu achei que os seus métodos davam pouco rendimento. Por isso, empreguei em Auschwitz o zyclon B, ácido prússico cristalizado que se atirava para a câmara de gás. bastavam três a quinze minutos para matar todos os ocupantes da camara, segundo as condiçoes atmosféricas.
Sabíamos que as pessoas estavam mortas quando deixavam de gritar. normalmente, esperávamos uma meia hora antes de abrir as portas e retirar os corpos. depois de retirar os corpos da câmara de gás, os nossos comandos especiais recolhiam os anéis e extraíam os dentes de ouro dos cadáveres. uma outra melhoria em relação a Treblinka eram as nossas câmaras de gás, prontas para receber 2000 pessoas de cada vez...."
c) Médicos Nazis. Alguns médicos alemães como Carl Clauberg, Josef Mengele ou Aribert Heim personificaram o pior que a espécie humana é capaz de produzir, mas não foram os únicos a fazerem experiências com seres humanos. É impressionante o número de médicos e cientistas alemães que mataram e estropiaram pessoas em nome da "ciência": Erwin Ding-Schuler, Klaus Schilling, Karl Gebhardt, Sigmund Rascher, Ernest Holzlohner, Hort Schuhmann, Hilario Hubrichzeinen, August Hirt, Karl Brandt, Siegfried Hamdloser, Oskar Shroeder, Karl Genzken, Karl Gebhardt, Josachim Mrugowsky, Rudolf Brandt, Helmut Poppendick, Waldemar Hoven, Herta Oberheuser, Hermann Becker Freyseng, Wolfrom Sievers, Gerhard Rose, Viktur Brack, etc, etc. Estes médicos não agiam sózinhos, os seus trabalhos "científicos", careciam de centenas de ajudantes: enfermeiros, técnicos e muitos outros que participavam na barbárie. Mais
No outro lado do mundo, cientistas e médicos japoneses, entre 1935 e 1945, usando seres humanos como cobaias, mataram centenas de milhares de chineses em experiências ditas "científicas". O principal centro de investigação japonês estava localizado em Harbin (China) - Unidade 731 -, era dirigida pelo sanguinário general Shiro Ishii.
3. Debates Atuais
Incrementação Humana (Transhumanismo, h+)
Manipulação Genética
Modificação do genoma humano
Inseminação artificial
Clonagem
Alimentos transgénicos
Doação e Transplantação de Orgãos
Eutanásia
4. Usos do Conhecimento Científico
O conhecimento científico tem sempre duas faces: poder ser usado benéfico para a humanidade, mas também o mesmo pode ser usado para o domínio e destruição de seres humanos ou do próprio planeta.
Santos Dumont(1873-1932), pioneiro da aviação mundial. Realizou o 1º. voo com balões dirigiveis, monidos de motores (1901), mas também deslocou pela primeira vez um avião impulsionado por um motor da gasolina (1906). Acreditava que os aviões iriam aproximar os povos, evitando as guerras. Entrou em depressão durante a 1ª. Guerra Mundial (1914-1918), quando assistiu a aviões a serem usados como máquinas de guerra.
Albert Einstein está ligado desde o inicio ao estudo e produção das bombas atómicas. Em 1939 escreveu ao presidente dos EUA - Franklin Roosevelt -, advertindo-o que os alemães poderiam usar o urânio para a criação de uma bomba de destruição em massa, e neste sentido os EUA deviam tomar a dianteira. Em 1940 inicia-se o Projecto Manhattan, no qual Einstei participa ativamente. No dia 6 de Agosto 1945 é a lançada a primeira bomba sobre Hiroshima, e três dias depois outra cai sobre Nagadaki. Einstei perante a repercussão mundial da destruição, torna-se num ativo pacifista. Em 1955 assina o célebre Manifesto Russell-Einstein, redigido por Bertrand Russell, alertando a humanidade para os perigos da proliferação nuclear, e apelando a uma maior consciência ética por parte dos cientistas.
Bertrand Russell discursando numa manifestação contra as armas nucleares em Trafalgar Square, Londres, 1962
Por estes e muitos outros exemplos, muitos pensadores têm encarado a Ciência como um verdadeiro perigo social, questionando inclusive muitas dos seus beneficios obtidas na medicina, agricultura, transportes, etc .
Argumentam também que a Ciência moderna não pode ser desligada do sistema capitalista, com o qual partilha o objectivo de dominar, explorar e manipular a natureza e os homens.
A ciência faz parte integrante da economia capitalista, como está bem patente no secretismo das investigações, nas prioridades da investigação, nas polémicas sobre a exploração comercial da descoberta do Genoma Humano, etc. A ciência é também um negócio.
É possivel impedir o mau uso da ciência?
Para muitos outros pensadores a questão do mau uso do conhecimento científico não se coloca. Porquê ? - A ciência é o único verdadeiro conhecimento que existe. É sempre bom e neutral. Nesta perspectiva, defendida em geral pela comunidade científica, apoia-se numa nítida distinção entre a ciência e a tecnologia. Os únicos responsáveis pelo mau uso do conhecimento científico não são os cientistas, mas as empresas farmeceuticas, militares e outras . Trata-se de uma perspectiva ingénua, pois ignora o próprio processo de produção do conhecimento cientifico (formação do cientista, definição de prioridades na investigação, financiamento, procedimentos, etc).
Ignora também que o cientista é um ser humano, um cidadão, cujas ações se traduzem em multiplas consequências presentes e futuras.
5. Regras
Bioética
6. Responsabilidade dos Cientistas
Tópicos a explorar:
- A história da ciência mostra que está sempre a abrir rupturas com o pensamento vulgar. Muitas investigações ou mesmo descobertas, no curto prazo são encaradas como atentados à dignidade humana, mas no médio e longo prazo revelam-se avanços extraordinários para a humanidade. Face a esta constatação, muitos cientístas sustentam que o seu trabalho é independente das questões éticas ou morais. Se tivesse em consideração este problema, Cristiaan Bernard nunca teria feito, a 3 de Dezembro de 1967, o primeiro transplante de um coração. O primeiro paciente sobreviveu 18 dias, o segundo 1 ano e 7 meses.
- O trabalho científico está hoje de tal modo fragmentado, atomizado, que muitos cientistas desconhecem se o mesmo faz ou não parte de uma linha de investigação mais vasta com objectivos económicos, militares ou outros. Nesse sentido, como um trabalhador de uma linha de montagem taylorista, limitam-se a executar um dado segmento de um produto, cuja concepção e produção global os ultrapassa. As questões éticas-morais devem ser, neste caso, atribuídas ao cientista ou à sociedade?
- No passado havia, em teoria uma clara separação entre as chamadas ciências aplicadas e as ciências puras. As primeiras tinham como objectivo a resolução de problemas práticos, as segundas de descobrir o funcionamento da natureza sem uma aplicação prática evidente. Esta distinção está hoje ultrapassa, nenhum conhecimento cientifico está afastado de um possivel aplicação prática (económica, militar ou outra).
- A formação dos cientistas imposta pela sociedade é hoje tão longa e exigente que lhes sobra muito pouco tempo para adquirirem uma formação cultural mais ampla, nomeadamente em termos ético-morais. A única precupação social que lhes é pedida é que sejam rentáveis, ou utilizem com rigor os fundos públicos postos à sua disposição, se for o caso. Neste sentido, os problemas éticos são encarados como algo distante do seu trabalho quotidiano. A quem devemos pedir responsabilidades ao cientista ou à sociedade que o formou ?
- Os cientistas não se podem eximir das suas responsabilidades, argumentando que não são eles que definem as prioridades a investigar ou que não interferem no uso do conhecimento que construiram. Como cidadãos do mundo têm o dever de se oporem-se a todo o tipo de investigações que possam resultar em prejuízos para a humanidade, nomeadamente sejam atentados à dignidade humana.
- Os cientista têm igualmente o dever, enquanto especialistas numa dada área, de contribuirem para o esclarecimento da opinião pública.
6.2. Responsabilidade dos Cidadãos
Tópicos a explorar:
- Nos regimes democráticos, os cidadãos tendem a falar apenas em direitos mais do que em deveres. A razão para esta situação está no facto de que nas democracias se assume que o dever de garantir a vigência dos direitos pertence ao Estado e que cabe aos cidadãos apenas fruir e defender os seus direitos. Ora, quando os Estados não cumprem os seus deveres para com os cidadãos, tomam medidas ou mostram-se indiferentes perante situações que podem trazer consequências futuras negativas, é dever de todos os cidadãos agirem, protestarem e participarem em ações por todos os meios pacíficos ao seu alcance para as impedir.
- Um dos deveres do cidadãos numa sociedade democrática, é o de participarem na tomada de decisões na sua comunidade. Um dever que exige que procurem informarem-se sobre as questões relevantes para a comunidade, como as que à ciência dizem respeito.
- As implicações atuais da ciência são tais, como vimos, que nenhum cidadão deveria alhear-se do que ocorre na mesma, nesse sentido uma participação cívica responsável implica hoje um conhecimento, ainda que superficial, sobre os riscos da ciência.
6.3. Responsabilidade dos Governos
Tópicos a explorar:
- Compete aos governos criar as condições necessárias para o esclarecimento dos cidadãos, nomeadamente no que à ciência diz respeito.
- Garantirem a liberdade dos cientistas no caso de recusarem-se a fazerem investigações, cuja finalidade possa trazer prejuízos para a humanidade.