Após o terramoto descrito
pela imprensa que terá constituído a passagem de Santana Lopes pela
Cultura, a esperança de que viriam dias melhores, não poderiam ser maior
quando o PS ganhou as eleições. Passados dois anos é cada vez mais
generalizado o consenso que as expectativas que foram na altura criadas
estão já defraudadas.
1. Constatações
Basta um simples confronto
entre as medidas de politica cultural anunciadas nos Estados Gerais e as
actuais preocupações, prioridades e investimentos do Governo para
facilmente se constar o desvio operado:
a) A paixão pela educação,
a cultura eclipsou-se perante a prioridade já definida por Cavaco Silva:
a melhoria dos critérios de convergência económica que possibilitem a
entrada de Portugal no pelotão da moeda única.
b) O impulso à democratização
cultural, apanágio de qualquer governo com preocupações sociais,
saldou-se por uma política cultural afinal com pretensões elitistas.
c) O reforço da articulação
do Estado com as autarquias - as grandes promotoras das actividades
culturais no pós-25 de Abril-, foi simplesmente ignorado.
d) O combate político
inicial pela transparência na administração pública da cultura
redondou no reforço dos laços familiares e do amiguismo, na nomeação
de dirigentes em constante atropelos à leis, inclusivé aprovadas pelo
actual Governo.
2. Estratégias mediáticas
A explicação para esta
situação em rápida degradação na gestão administrativa da cultura,
exige uma análise prévia à politica do próprio Governo. Ao fim de dois
anos de exercício do poder é consensual que o PS não tem qualquer política
cultural definida, nem sequer a foi capaz de a construir neste período.
Limitou-se a apontar um conjunto de medidas avulso de acordo com o seu
impacto político do momento. Desta realidade de fundo resulta um gestão
desconexa, dando a sensação que a todo o momento se está a iniciar o
processo de decisão de algo. O que se tornou também evidente é que o PS
apenas está apostado em manter-se no poder e consolidar a sua influência.
A gestão corrente, sem sobressaltos, tornou-se o paradigma deste governo.
António Guterrez, melhor que qualquer outro líder partidário, tem também
uma clara percepção da importância que os meios de comunicação social
possuem, sobretudo pela sua capacidade de através da selecção das
noticias que veiculam determinarem os assuntos em discussão. A criação
de uma diversão constituída por "factos" políticos, reais ou
ficcionais, tornou-se assim um novo meio de fazer política. É sabido
como a agenda do governo, passou a obedecer a uma planificação rigorosa
em função do seu impacto mediático das decisões no executivo. As
prioridades do país acabaram por submeterem-se assim a uma lógica de
diversão noticiosa, cujo único objectivo é manter a gestão do governo
como assunto público de de discussão. A ilusão de que se governa,
torna-se assim a substancia do próprio acto da governação.
Partindo deste quadro de
fundo torna-se agora mais inteligível, algumas medidas governativas no
domínio da cultura.
A primeira medida de carácter
simbólico, foi a transformação da Secretaria de Estado da Cultura em
Ministério. Por um golpe de mágica deu-se-lhe um estatuto mais mediático,
mas manteve-se-lhe praticamente o mesmo orçamento e os recursos humanos.
A reestruturação que então foi empreendida e que ainda não parou,
procurou no plano organizativo corresponder ao arquétipo de um
"Ministério". Para o efito as estruturas anteriores foram
literalmente pulverizadas em novas organizações e competências. A lógica
deste processo, não a encontramos no plano da racionalidade do usos dos
meios ou investimentos públicos, mas na sua dimensão simbólica para a
opinião pública.
A segunda medida foi a da
escolha dos actores da nova política cultural. Para um lugar identificado
com a figura controversa de Santana Lopes, associado na comunicação
social à imagem de um boémio para o qual não existia diferenças entre
cultura e futebol, Guterres nomeou um ministro, com a propriedade de ser
filósofo. Para Secretário de Estado acabou por nomeado um musicólogo
mediático, que no plano simbólico representava todos os
"independentes" que desde os Estados Gerais haviam apoiado o PS
na sua ascensão ao poder.
A escolha
de Carrilho e de Nery revelou-se também duplamente estratégica, numa
perspectiva mediática.
Na verdade, para a sua
concretização, Guterres necessitava para estes lugares demasiado
expostos aos olhares da comunicação social, de dirigentes políticos
familiarizados com a arte de influenciar a opinião pública. Neste
aspecto, Carrilho reunia o perfil ideal, para além de ser um "filósofo",
facilmente associado à imagem de "culto", desde há alguns anos
centrara também as suas preocupações académicas na Retórica. Nery,
apresentava, por outro lado, um curriculum invejável no exercício
prático e público da denúncia da ruinosa politica cultural durante
o anterior governo.
Numa sociedade que funciona
por redes de comunicação, a escolha de Guterres, revelou outras
virtualidades. Carrilho e Nery pertencem à denominada rede académica de
"fazedores de opinião", vertente que não abundou no anterior
Governo. Ambos são docentes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da UNL. Nesta Faculdade nos últimos anos, destacaram-se um número apreciável
de docentes mediáticos, facto da maior relevância neste contexto. Não
é pois de estranhar que tenha sido nela tenham sido recrutados muitos dos
novos dirigentes para a gestão cultural do novo governo. A opção
confirmou a eficácia no plano mediático. Quando alguns destes
docentes-dirigentes, foram criticados veio logo ao de cima a rede de relações
profissionais e de amizade em que estavam integrados. De imediato outros
docentes da mesma Faculdade, assumiram a pública defesa de controversas
medidas tomadas pelos seus colegas. Alguns, como Fernando Rosas, Eduardo
Prado Coelho ou Medeiros Ferreira levaram estas posições ao limite da
razoabilidade deontológica. Comprovada a eficácia comunicacional da opção,
Carrilho procurou alargar a rede a académicos do ISCTE. Na rede
apareceram logo em sua defesa críticos de arte, sociólogos, etc. A receita
estava encontrada.
Reforçando esta, foram
igualmente recrutados jornalistas para assessores ou mesmo para cargos
dirigentes, financiados suplementos com regularidade na imprensa, e tomadas
outras medidas de influência directa nos meios de comunicação social.
3. Os falsos
protagonismos
Ao contrário de Cavaco
Silva, Guterres definiu a sua imagem como um politico dialogante e
harmonizador de sensibilidades. Construiu um discurso morno feito à
medida para uma população envelhecida, com um baixo nível de
escolaridade, que manifesta nos inquéritos estatísticos uma forte
propensão para os valores conservadores, e medos generalizados face à
mudança ou ao meio envolvente. A função menos simpática do politico de
rupturas deixou-a para outras figuras do seu governo.
Retomando a matriz do
Estado Novo, encarregou o Ministério da Cultura de empreender a denúncia
do cavaquismo. Uma leitura atenta dos discursos de Carrilho e de Nery, no
primeiro ano, revela claramente a assumpção desta função. Quando foi
mesmo necessário, Carrilho veio também a público atacar "históricos
"do PS, como Manuel Alegre, para lhes dizer que os tempos eram
outros, não os de principios, mas de estratégias mediáticas.
4. A Dura Realidade
Como ensinou Platão, o
mundo das imagens é também o da efemeridade. Para manter a sua função
encantatória é necessário a sua permanente reinvenção. Caso contrário,
haverá sempre o desejo de procurar saber como são as coisas na realidade
para além das suas multiplas aparências.
Um rápido confronto das
medidas de política cultural, difundidas como "factos" na
comunicação social, com a realidade materializada, revela um desvio
devastador.
Basta observar a forma como
se tem procedido à criação das novas estruturas do Ministério da
Cultura. Avançam e recuam aos solavancos, conforme o impacto político do
momento. Anunciam-se prazos para a conclusão de restruturações orgânicas,
que logo de seguida são prorrogados indefinidamente no tempo. Os novos
organismos logo após terem sido criados revelam fragilidades inconcebíveis,
como desajustamentos entre os objectivos e as actividades onde deveriam
actuar, ou simplesmente tem falta dos meios mais elementares para poderem
funcionar. Perante a incapacidade real de promover qualquer política
cultural sustentável, Rui Vieira Nery, acabou por pedir a demissão.
Procurando manter a imagem pública de imperturbabilidade no Ministério,
só restou a Carrilho continuar a centralizar as todas as decisões e
atribuições na sua pessoa, apertando a rede de fidelidades e amizades.
Para o lugar de Nery acabou por ser nomeada uma sua assessora, mulher de
outro seu assessor, também ele chamado a resolver problemas de demissões
no Ministério. A rede de indefectíveis concentra-se agora em reduzidos círculos
familiares ou de interesses corporativos.
O que se passa na promoção
do livro e da leitura apresenta já sinais de decomposição. Promulgou-se
uma "lei do preço fixo" com o intuito de salvar as livrarias da
concorrência das grandes superficies. Conclui-se agora que a mesma afinal
traduziu-se no aumento das percentagens de comercialização para os
hiper-mercados e na penalização do custo dos livros para os leitores. A
Rede de Leitura Pública continuou a avançar, mas agora num ritmo de
investimentos muito inferior aos do governo anterior. A grande operação
mediática concentrou-se na feira de Frankfourt. Durou 6 dias, mas durante
dois anos garantirá os ordenados a uma comissão liquidatária.
Na Biblioteca Nacional de
Lisboa, depois do anúncio de inúmeras medidas inovadoras, o comum dos
leitores continua afinal a constatar que a Biblioteca Nacional continua a
não conseguir garantir de forma eficiente uma das missões essenciais
para a qual foi criada, isto é, servir de Depósito Legal e fiscalizar o
cumprimento da Lei neste domínio. A revisão deste diploma arrasta-se há
anos. Após inúmeras hesitações, foi constituída mais uma Comissão
com a magna missão de estender o Depósito Legal aos novos suportes
digitais. As dúvidas sobre a eficácia desta intenção aumentaram. Na
verdade, se a Lei actual mais restrita não é cumprida, como será o
cumprimento de outra com contornos muito mais ambiciosos. As preocupações,
talvez por falta de meios, continuam a ser com o acessório, esquecendo-se
como o essencial.
Onde o pandemónio é total
é no sector do multimédia e do audiovisual. Após ter sido reestruturado
o IPACA e criada uma comissão para as novas tecnologias (Iniciativa
Mosaico), eis que surge uma Comissão Interministerial que conclui estar
tudo mal no cinema, multimédia e no audiovisual neste país. Era preciso
reestruturar tudo de novo! A demissão da Presidente do IPACA foi a
consequência natural deste processo. A nomeação para o seu lugar de José
Costa Ramos foi também o corolário de uma estratégia de centralização
forçada pela ausência de qualquer política cultural. Como se espera
fazer tanto como na Iniciativa Mosaico, avançou logo com uma nova Lei do
Cinema, destinada a constituir noticia no meios de comunicação social,
mas com resultados nulos para a arte ou a industria cinematográfica em
Portugal.
Onde o espectáculo do
desacerto é total, é no domínio das artes do espectáculo. Após a
reestruturação do TNSC, TDM II, TNSJ e da CNB, começa-se agora a
concluir-se que funcionarização da cultura é um modelo, que não
resolve o essencial: o desperdício de recursos, ausência de projectos e
de público. A obra prima do novo Ministério, o Instituto de Artes do
Espectáculo (IPAE ), tornou-se o símbolo da confusão reinante. Apesar
de não existir legalmente, este "organismo" que não passa de
uma comissão instaladora, promove concursos públicos, atribuiu verbas, e
pasme-se possui já dois Centros de Artes do Espectáculo, um em Viseu, a
terra do ministro, outro em Évora, sediado no Cendrev. Curiosamente, este
último parece ser a única obra concreta do ex-presidente da mencionada
Comissão. Ainda mais curioso é saber que nele trabalha como encenador.
No património, Luis
Calado, mantém-se calado e prossegue no cargo de presidente. O IPPAR
continua à espera desde 1985 de uma nova Lei do Património e sobretudo
de uma gestão adequada que dê sentido a um organismo que parece não o
ter.
Na Torre do Tombo/Arquivos
Nacionais, o entusiasmo gerado com regresso de José Matoso está
rapidamente a desvanecer-se. Pouco mais se faz do que gestão corrente.
Focos de inovação como o projecto Narciso foram pura e simplesmente
abandonados. A palavra mais ouvida é agora, "não há dinheiro
!". Apesar dos apelos públicos do seu presidente para que fossem
salvos da desagregação os arquivos do SNI/SEIT, constata-se que não há
meios materiais para o evitar. Paralelemente o MC prodigaliza-se nos
apoios financeiros à Fundação de Mário Soares e na preservação dos
seus arquivos pessoais.
Nos museus acumulam-se os
problemas. A ausência de verbas e de pessoal conduziram à demissão de
Maria Antónia Paula. Para o seu lugar foi nomeada, Raquel Henriques da
Silva, vinda do Museu do Chiado. Suscita ainda algumas expectativas de poder
efectuar uma mudança que tarda.
Uma área estratégica como
Direito de Autor terminou nas recentes reestruturações por ser
praticamente pulverizada. Parte das suas competências estão entregues à
Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC), outras a um fantasmagórico
Gabinete na dependência do próprio ministro. A lei de compensação dos
autores e produtores continua a arrastar-se na Assembleia da República à
espera de uma redacção final. A falta de sentido de Estado não pode ser
maior.
A questão da Lei do
Mecenato foi transformada por este Ministro, no inicio da legislatura, num
exemplo paradigmático da incapacidade do governo anterior para lidar com
o envolvimento das empresas no apoio aos eventos culturais. Foi então
anunciada uma profunda revisão da Lei do Mecenato. Consta-se hoje que a tão
proclamada revisão não passou de uma simples clarificação de alguns
artigos e, pasme-se, os mecenas já tiveram melhores dias entre nós.
Nas artes plásticas e na
fotografia as situações de contornos pouco claros continuam. Não seria
aliás de esperar outra coisa. As primeiras artes foram contempladas com
um pomposo Instituto de Arte Contemporânea. Entre os objectivos definidos
na sua Lei Orgânica e as acções pontuais que afirma ter promovido o divórcio
não poderia ser maior. Augura-se que dentro em breve deixe mesmo de
funcionar, para que os seus dirigentes se entreguem a outras tarefas mais
lucrativas. O Centro Nacional de Fotografia, sediado no Porto,
ultrapassadas que estão as irregularidades processuais na nomeação dos
seus dirigentes, continua a gerar alguma expectativas que desenvolva um
conjunto de acções que palidamente se aproxime do que foi no inicio
difundido na comunicação social.
O neófito Instituto
Português de Arqueologia, depois das confusões iniciais da sua criação,
continua a não parar de dar provas de que para os seus dirigentes o
"vale tudo" se tornou uma regra de ouro. Chegou-se ao ponto de
encenar-se para a televisão a "descoberta" cientifica de um
astrolábio que havia sido encontrado quatro meses antes, por um
arqueólogo amador. As preocupações mediáticas sobrepõem-se aos
princípios de deontologia profissional.
O CCB, prossegue a gestão
cultural iniciada em 1992. As atoardas dos novos dirigentes foram já
esquecidas. Basta uma simples comparação com o que se fazia antes e
agora, para constatar que nada se inovou. O que é pena!
A Inspecção-Geral de
Actividades Culturais (IGAC) que substituiu a antiga Direcção-Geral dos
Espectáculos, pretendia trazer uma almejada transparência e rigor na
gestão do Ministério, nomeadamente na fiscalização das verbas que são
atribuídas. Os resultados já apurados não poderiam ser mais negativos.
As questões da condições técnicas e de segurança dos recintos de
espectáculos e dos divertimentos públicos foram marginalizadas. A
transparência na gestão no Ministério tornou-se opaca. Para cúmulo,
regista-se já o envolvimento público do seu inspector-geral na ocultação
de factos incómodos, como aconteceu no caso do Politeama, através de
manobras de diversão.
Outras áreas culturais,
como as Delegações Regionais da Cultura, Academias, ou as intervenções
no campo da lusofonia, revelam o mesmo divórcio, entre a imagem veiculada
na comunicação social e a ausência de práticas estruturantes.
5. A Evasão
Perante uma reestruturação
que não consegue concluir. A incapacidade para afirmar uma política
cultural substantiva e coerente, a Carrilho só resta agora a diversão,
cada vez mais desligada dos problemas concretos que se vão avolumando. Não
é pois de estranhar que se tenha vindo a tornar noticia por decisões
pouco abonatórias da sua capacidade de político clarividente. O caso da
construção de uma casa de banho no Palácio da Ajuda, a insonorização
do seu gabinete, a pretensa homenagem nacional a Mário Soares, ou o
processo movido ao jornal "Tal & Qual" traduz a desorientação
reinante. O vazio enunciado por Gilles Lipovestsky adquiriu gradualmente a
sua plena expressão na sua prática política.
A decisão de Guterres de o
manter à frente do Ministério da Cultura, na recente remodelação
ministerial, confirma em resumo sentido da sua escolha. A sua função não
é a de construir qualquer política cultural com preocupações sociais,
mas sim, a de assumir a diversão mediática transvestida de roupagens
culturais. O governo, segundo os novos critérios de avaliação política,
é tanto mais eficaz quanto maior for a quantidade de "factos políticos"
que conseguir que sejam seleccionados para discussão pública. A política
tornou-se uma encenação, deixando de fazer sentido perguntar-se pela
verdade ou a falsidade dos argumentos em confronto. O que se espera dos
novos actores é que dominem as técnicas de persuasão, são estas que
lhes garantem a sua base de apoio. Só que estes actores começaram a
representar para si mesmos, esquecendo-se que ainda continuam em palco
perante o olhar de todos nós. Até quando?
97.11.24
Carlos Fontes
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