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"Política
do Espírito" | Áreas de Intervenção | Estruturas
| "Filosofia Portuguesa" | As
Causas do Afastamento
António Ferro continua a ser uma figura
incontornável para a compreensão das políticas culturais em Portugal. A cultura
tornou-se com ele não apenas num veículo de propaganda, mas sobretudo um
eficaz instrumento de controlo social. Ao contrário do que se afirma, a sua
principal preocupação não era a criação e difusão das ideias do regime,
mas a criação de meios de ocupação dos "tempos livres" dos
portugueses. Estes constituíam um tempo potencialmente perigoso para o poder se
não fosse organizado. A contribuição mais significativa de António Ferro
foi, como veremos, ter mostrado que as múltiplas manifestações culturais
podiam ser organizadas de modo a predisporem os indivíduos para certas formas
de comportamento e pensamento espontâneo.
A política cultural do Estado Novo nos anos
trinta e quarenta, estava longe de reduzir-se ao SPN/SNI. Era partilhada e
prosseguida por diversos organismos do Estado, sob a orientação de Salazar, o
seu verdadeiro mentor. Em todas as áreas contava com a colaboração de muitos
dos melhores criadores e intelectuais do tempo. Para além dos aparelhos locais,
como as câmaras municipais, no Estado, cinco organismos possuíam uma acção
muito relevante, ainda muito longe de ser esclarecida na sua globalidade.
- O Ministério da Educação Nacional (MEN), com
Carneiro Pacheco (1936-1940) e depois com Mário de Figueiredo (1940-1944),
assumiu claramente uma função doutrinária no regime.
- O Ministério do Interior(MI), desde 1927 tinha
a seu cargo a censura à imprensa e aos espectáculos. Cabia-lhe ainda o
licenciamento dos espectáculos e divertimentos (vistos), assim como dos
recintos onde estes se realizavam. Controlava ainda o registo dos artistas, intérpretes
e das empresas promotoras de actividades artísticas. Em 1940, a censura da
imprensa e espectáculos passou a ser coordenada também pelo SPN, sendo
integrada definitivamente no SNI em 1944, assim com as restantes áreas. O MI
assumiu então uma função mais estritamente policial.
- A FNAT- Fundação Nacional para a Alegria no
Trabalho, criada em 1935, ocupava-se dos tempos livres dos trabalhadores e da
sua formação cultural, segundo os valores do regime.
- O Comissariado Nacional do Emprego, criado em
1932, chefiado por Duarte Pacheco, de forma muito discreta, mas não menos
eficaz, teve um papel activo na promoção cultural, nomeadamente financiando a
contratação de desempregados.
- O Secretariado de Propaganda Nacional (SPN),
criado em 1933 e transformado em 1944, no Secretariado Nacional de Informação,
Cultura Popular e Turismo (SNI), duas criações atribuídas a António Ferro,
estavam directamente ligadas a Salazar. De forma persistente, António Ferro, ao
longo de 16 anos foi transformando uma estrutura inicial muito artesanal,
numa verdadeira máquina de propaganda e controlo das actividades informativas,
culturais e turísticas que ainda hoje é apontada como modelo de eficiência.
Apesar das limitações inerentes a uma análise
centrada apenas num destes organismos - a SPN/SNI/SEIT -, foi todavia a
perspectiva seguida neste trabalho, em grande parte ditadas por os
condicionalismos que lhe são inerentes.
A "Política do
Espírito"
António Ferro não estava sozinho quando
defendia todo um ideário que expressava identidade da cultura portuguesa,
naquilo que julgava ser a sua autenticidade. Desde finais dos anos trinta, que
este ideário percorria toda a administração pública , sendo nos aos quarenta
teorizado por muitos dos mais reputados intelectuais portugueses.
António Ferro, tal como Gobbels tinha uma percepção
clara de como a cultura se poderia transformar num poderoso instrumento de poder
ao serviço do Estado, nomeadamente na construção de uma retórica cultural
onde os conflitos sociais são harmonizados em torno de grandes desígnios
nacionais.
Ao Povo Português é atribuída uma missão
divina - propagar e defender os grandes valores da cristandade no mundo. O seu
Império é apresentado como o exemplo da obra civilizacional do mundo
ocidental. As suas aldeias, constituída por gente trabalhadora, pobre e feliz
é apresentada como um exemplo às outras nações civilizadas, onde pululam
grandes urbes industrializadas minadas pela desordem e imoralidade.
A política do Estado Novo, no seguimento da
ditadura militar de 1926, assumiu como missão restaurar a "alma da pátria
portuguesa" que os governos democrático-liberais haviam procurado
destruir. A ordem pública, o miraculoso equilíbrio das contas públicas eram
apresentados como exemplos de um país que voltou a reencontrar-se consigo próprio,
aceitando o que herdou do seu passado glorioso, com o orgulho de quem aceita o
que melhor pode aspirar, libertando-se de todos os seus desejos exteriores.
Conformam-se os pobres com o que possuem, e os ricos com aquilo que Salazar lhes
proporciona. As elites culturais com o estatuto de privilégio que lhes é
proporcionado. A exaltação patriótica dos "valores nacionais" não
se projectam no sentido de descobrir novos saberes ou técnicas, mas na
auto-contemplação do ser português, como se nessa atitude se contivesse tudo
o que de melhor se pode aspirar. A história de Portugal, como a concebe Salazar
e a encena António Ferro, termina afinal na quietude contemplativa da sua própria
trajectória, nos seus hábitos e costumes, tudo o que em suma, faz que sejamos
o que já somos.
Áreas de Intervenção
Nos dez primeiros anos, o SNP privilegiou três
áreas: a propaganda do ideário do regime, o turismo como meio de
difusão da imagem de um país feliz consigo próprio, e a cultura popular
como instrumento integrador das camadas mais baixas da população.
Depois de 1944, o SNI, dotado de novos meios,
para além da propaganda, começa a actuar no controlo e censura da informação
veículada pela comunicação social e com a inspecção das actividades
culturais. O Estado Novo sente-se cada vez mais isolado, e com uma ideário que
não consegue gerar tão amplos consensos como os que no período anterior foi
capaz de produzir. O turismo foi perdendo grande parte da sua função
ideológica, para se transformar na promoção de mais um destino para férias
a preços baratos. As preocupações económicas secundarizam as de natureza
ideológica. A cultura popular acabou por ser enquadrada no âmbito da etnografia,
em regra ao serviço também da promoção turística. O SNI que até aí
privilegiara a população rural e o imaginário dirige-se agora para as camadas
urbanas, nomeadamente as de maior rendimento e instrução. Só após a saída
de António Ferro, em 1949, será possível dar corpo a esta nova orientação
política.
Estruturas
Para além das ideias que caracterizaram, cada
período, António Ferro, foi criando uma poderosa estrutura burocrática e
concebendo amplos programas culturais que ainda hoje, em grande parte,
sobrevivem. Entre as suas funções mais salientes destacam-se as seguintes:
A recolha e tratamento da informação dos órgãos
de comunicação nacionais ou estrangeiros de apoio aos altos dirigentes do
Estado, servidos por uma biblioteca, uma Fototeca e uma
Filmoteca,
A propaganda era alimentada por uma contínua
produção de informação destinada aos órgãos de comunicação e à
Emissora Nacional, desdobrando-se numa vastíssima produção editorial,
em diversas línguas, organização de exposições em Portugal ou no
estrangeiro. O Brasil surgia neste contexto como uma força que permitia
amplificar a voz de Portugal no mundo. António Ferro, apesar de entrever a
importância económica do turismo, viu sobretudo nele um meio de propaganda. O
apoio à cultura, nomeadamente às artes plásticas, cinema, música,
dança, teatro, privilegiou a atribuição de prémios, a
encomenda ou compra de obras ou a produção de eventos em detrimento do apoio
à criação de estruturas para a produção cultural.
A grande promoção cultural de António Ferro
centrou-se contudo em volta da cultura popular, que tinha nas
romarias, arraiais e feiras a sua expressão mais genuína. À sua volta
procurou criar uma grande encenação não apenas para os estrangeiros, mas
sobretudo para consumo interno. Uma vasta equipa de artistas e intelectuais,
como dissemos, ao longo dos anos sob os motivos mais diversos foi pacientemente
reelaborando as grandes manifestações populares em termos plásticos mais
modernos, apresentando-as em seguida como expressões genuinamente populares.
Fragmentos de memórias locais são pretexto para a criação de tradições
centenárias. A confusão entre o falso e o autêntico era total. A promoção
da cultura erudita junto do povo, foi neste contexto limitadíssima, pois a
mesma correspondia a um desvio à integração do povo numa cultura popular que
se lhe apresentava como exaltante.
No final da década de quarenta, a política
cultural do Estado Novo, nas suas diversas vertentes, estava claramente
esgotada, surgindo entre os defensores do regime, um número crescente dos que
preconizam a sua mudança. No plano económico, o modelo corporativista, ainda
assente na ideia de um retorno às corporações medievais, apesar de continuar
a alimentar o imaginário de muitos intelectuais, é esvaziado de conteúdo
ideológico. Em breve, teremos um corporativismo regulamentado pelo Estado,
cujos dirigentes não se reconhecem no próprio corporativismo. No plano
cultural, como reconhecerá Salazar, apesar das inúmeras obras encomendadas ou
apoiadas pelo Estado Novo, nenhum criador, ideia ou obra cultural conquistara
projecção além fronteiras. Depois de 1938, a imposição por parte do Estado
das temáticas regionalistas ou historicistas, contribuíra afinal para desligar
ainda mais a arte produzida em Portugal das grandes correntes internacionais.
A "Filosofia
Portuguesa"
Face a esta evidência, muitos intelectuais
passam a defender que a cultura portuguesa, reflectia outras categorias mentais
inapreensíveis noutras línguas. A originalidade da racionalidade do pensar
português, só os portugueses o podiam compreender. Durante os anos cinquenta,
no nosso acanhado meio filosófico, a questão central é a existência ou não
de uma filosofia portuguesa. Nos seus pressupostos, continuava-se afinal
a discutir a política do espírito de António Ferro, afirmando ou negando-a.
As Causas do
Afastamento
Durante a II Guerra Mundial (1939-1945), dois fenómenos
começaram a esvaziar o discurso ideológico montado por António Ferro.
- O primeiro, foi o contraste que transparecia
entre a miséria sentida pela maioria dos portugueses e a exaltante opulência
de paz e bem estar com que alguns milhares de portugueses e estrangeiros
viviam nas estâncias balneares, em especial na Costa do Sol. A activa
propaganda do SPN/SNI, exaltando a paz e prosperidade do país, feita na base
de contrastes sociais, entre pobres e ricos, apenas aumentava esta sensação
de privação para a maioria da população. A partir de 1943, conforme
reconhecia a Igreja, o Partido Comunista Português começou a emergir
explorando estes mesmos contrastes a que o Neo-Realismo dará forma artística.
- O segundo foi a emergência dos Estados
Unidos da América como a grande potência mundial, constituindo os seus
estilos de vida e a sua democracia verdadeiros símbolos da modernidade. Na
reconstrução dos países europeus devastados pela guerra, a imprensa
reconhecia ritmos de crescimento económicos que não tinham paralelo com os
fracos progressos obtidos pelo Estado Novo. A comunicação social, afecta ou
não ao regime, não deixa de difundir imagens desta prosperidade distante de
que a grande maioria dos portugueses estava privada.
O discurso da superioridade de modelo de
sociedade portuguesa, assente no corporativismo, transformou-se subitamente no
discurso das causas do atraso económico do país. Neste contexto, Salazar
rapidamente percebeu que tinha que alterar o discurso do regime e mudar os
mecanismos de controlo social, mas para isso tinha também que afastar o homem
que criara e encarnara o modelo anterior. Em 1949 António Ferro é
compulsivamente afastado do cargo que desempenhara desde 1933. Chegara a hora
dos burocratas.
Carlos Fontes
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