Recintos de Espectáculos e Divertimentos Públicos

Mudar enquanto é tempo

 

As medidas que vêm sendo tomadas pelo actual ministro da cultura na área dos recintos de espectáculos e de divertimentos públicos fazem recuar o país a 1868, quando se começou a pulverizar as competências normativas e fiscalizadoras dos espectáculos pelas câmaras municipais, governos civis, e outros organismos do Estado. O resultado foi anos depois, o descalabro em termos de regulamentação e de fiscalização das salas de espectáculos, situação que só em 1927 foi, em parte, corrigida. Pelo meio ficou o maior desastre ocorrido numa sala de espectáculos em Portugal - o incêndio no Teatro Baquet, no Porto, em 1888, onde morreram 120 pessoas carbonizadas, numa sala que depois se reconheceu não reunir as condições mais elementares de segurança, e nem sequer se apurou a quem competia a sua fiscalização...

Ainda é, todavia, tempo de arrepiar caminho, mas para isso será necessário definir um outro enquadramento para a tutela dos recintos de espectáculos e divertimentos públicos. O Ministério do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território (MEPAT) ou, mesmo o Ministério da Administração Interna são duas opções a considerar.

Os sinais de uma política

Os sinais da política cultural do momento, não sendo novos, face às medidas já tomadas revestem-se de aspectos preocupantes. Desde 1975 que as estruturas governamentais que tutelam a cultura, procuram desfazer-se de funções herdadas da antiga Secretaria de Estado da Informação e Turismo (SEIT), em particular das suas competências na área dos recintos de espectáculos e divertimentos públicos.

Alguns exemplos recentes, como a célebre "pala" do Estádio do Sporting (1992) ou a morte de duas crianças no Aquapaque do Restelo ( Julho de 1993), revelam que o licenciamento e fiscalização destes recintos se podem tornar particularmente incómodos para ministérios que vivem da gestão da imagem das suas políticas na comunicação social. Quando estes recintos são notícia, infelizmente, são-no quase sempre por motivos negativos.

Não é pois de estranhar que o Ministério da Cultura, tenha empreendido uma lenta desarticulação desta área. Os sinais estão aí, basta observá-los.

Em Abril de 1996, a revista Proteste da DECO(Assoc. Port. Defesa do Consumidor) alertava para o facto da inexistência de qualquer regulamentação sobre os divertimentos públicos. A legislação que existia datava de 1959 e fora revogada pelo actual governo em fins de 1995, sem que a tenha substituido por qualquer outra. As competências neste domínio pertenciam, na altura, ao Ministério da Cultura, que as exercia através da Direcção-Geral dos Espectáculos (DGESP), sendo as mesmas transferidas para as câmaras municipais. Passou a competir a cada uma fazer a sua própria regulamentação para os divertimentos que se instalassem no respectivo concelho, o que tem produzido uma total arbitrariedade de critérios de norte a sul do país. Face a este vazio legal, a 27 de Maio de 1997, o Ministério do Ambiente, através do Instituto do Consumidor, anunciou a decisão de avançar com o estudo da regulamentação das condições técnicas e de segurança dos parques infantis, equipamentos de feiras e parques de diversão, o que se traduzirá na separação dos divertimentos públicos da generalidade dos recintos para a diversão e espectáculos.

Perante a contínua pressão da comunicação social, face à inexistência de regulamentação específica de recintos de diversão aquática, em Maio de 1996, o Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, chamou a si a aprovação da mesma. Na realidade há largos meses que esta adormecia na gaveta do Ministro da Cultura, onde aguardava uma decisão. A DGESP concluira o Regulamento e entregara-o em Abril de 1995. Neste caso foi o Instituto Nacional dos Desportos que veio a assumir o licenciamento destes recintos, dentro da mesma linha de dispersão das competências técnicas por vários organismos.

Em Abril de 1997, mais uma vez, a revista Proteste alertava para o facto de, numa inspecção feita a 10 discotecas da grande Lisboa, nenhuma delas reunir condições de segurança segundo parâmetros europeus. A questão não era nova. Desde há muito que a DGESP se debatia com o problema da segurança destes recintos, sem meios técnicos ou humanos adequados. O quadro da situação, em princípios de 1995, era revelador: cerca de dois terços dos recintos de diversão , como discotecas, bares, pubs, e similares, tinham as licenças caducadas. Os atrasos no seu licenciamento que, em alguns casos, ultrapassavam os dez anos, contribuíam também para que as entidades fiscalizadoras contemporizassem com um elevado número situações ilícitas.

Na mesma linha da orientação política, as medidas tomadas, já pelo actual governo, em Novembro de 1995, consistiram, na aprovação de um novo regime de espectáculos e divertimentos públicos, que transferiu para as câmaras municipais as atribuições do licenciamento e fiscalização destes recintos, deixando ao critério de cada uma fixar a periodicidade das respectivas vistorias!.

Estas medidas foram justificadas em nome da melhoria da operacionalidade dos serviços do Ministério, dada a redução do número de recintos que ficariam na sua dependência. Segundo o Novo Regime dos Espectáculos, cabe-lhe agora apenas os destinados à realização de espectáculos de natureza artística, como sejam os teatros, cinemas, cine-teatros, coliseus, praças de touros e outros similares. Mas estamos perante, um tipo de recintos que está longe de ter uma situação controlada, pelo que tudo indica que também ser abandonada pelo Ministério da Cultura, atendendo aos problemas que comporta.

Dois casos, recentes ilustram a situação desses recintos

Em Março de 1997, quando na imprensa tauromáquica se comentava o facto da licença da Praça de Touros do Campo Pequeno não ter sido revalidada pela DGESP, porque a mesma não oferecia condições técnicas e de segurança, constatava-se que das 60 praças de touros existentes no continente, apenas 22 possuiam licenças válidas.

Meses antes do massacre e incêndio no "pub" Meia Culpa (14 de Abril), um jornal local (Repórter do Marão) confirmava junto da DGESP que o cine-teatro em Amarante, propriedade da respectiva câmara, não tinha a licença de recinto válida, para além de apresentar graves problemas de segurança. Contudo, continuava a realizar espectáculos com regularidade.

A extensão destes problemas é todavia maior do que os casos indicados. Na realidade, apenas cerca de 24,1% dos actuais recintos para espectáculos de natureza artística, a cargo da actual Inspecção-Geral das Actividades Culturais (ex-DGESP), têm licenças válidas.

A criação da actual Inspecção-Geral das Actividades Culturais (Dec-Lei 80/97, de 8 de Abril), no Ministério da Cultura, vem reforçar o abandono da área dos recintos de espectáculos e divertimentos públicos. Primeiro submergindo o que dela resta, no vastíssimo campo das actividades culturais, destruindo assim a identidade e experência que a antiga Direcção-Geral dos Espectáculos era herdeira. Depois, voltando a actividade do novo organismo para o interior do próprio Ministério, isto é, para a fiscalização das entidades dependentes ou subsidiadas, sem o que não faria sentido esta reestruturação. Em qualquer dos casos, o corpo de inspectores actuais e em perspectiva, para tantas actividades culturais, servirá mais para efeitos mediáticos do que para acções reais de fiscalização no terreno. Tendo em conta a actual orientação "elitista" do Ministério da Cultura, e alguns projectos em estudo de transferência de competências para as autarquias, é legítimo supôr que também estas acabarão por arcar com mais estes recintos ou, quem sabe, venha a ser assumida por qualquer organismo público que tome a iniciativa...

 

Conclusões preliminares

As medidas acima assinaladas, se resolvem um velho problema de enquadramento de funções incómodas no Ministério da Cultura, não deixam de contribuir para agravar. O problema é mais vasto, sendo já visível o aumento da degradação da cultura técnica e de segurança destes recintos no país. Uma longa tradição acumulada deste 1836 está a ser destruída, sem que o sistema que a substitui, corresponda a uma maior eficiência, nem à evolução recente do sector a nível mundial. Neste aspecto, pelo contrário, tudo aponta para uma evolução no campo dos espectáculos artísticos, que tende a incorporar cada vez mais componentes de diversão e entretenimento. Os recintos estão também a adquirir uma maior polivalência, onde a antiga distinção entre os destinados a espectáculos e os de diversão deixou de fazer sentido.

Uma das finalidades básicas do Estado, tem sido a de garantir aos espectadores e aos utentes destes recintos e divertimentos que as condições técnicas e de segurança exigidas por Lei sejam asseguradas. Daí que qualquer política cultural consequente as tenha em consideração como forma fixação e atracção de novos públicos. Ora, a actual pulverização de competências está a traduzir-se numa perda de eficácia dos serviços públicos, na dispersão da informação sobre o que se passa no terreno, para além de estimular os conflitos entre as entidades intervenientes.

Para as empresas do sector, este novo sistema significa mais burocracia, e para o comum dos cidadãos um aligeirar de responsabilidades do Estado com a qualidade dos equipamentos culturais e de diversão.

Atendendo à actual estrutura administrativa e ao rumo que imprimiu o Ministro da Cultura nesta área, a solução para o caos em perspectiva, passa pela rápida concentração das competências normativas numa entidade de carácter nacional, eventualmente sediada num dos ministérios acima citados. É ainda possível dar alguma coerência e eficácia à actuação dos orgãos públicos neste domínio sem produzir grandes rupturas. Caso contrário, arriscamo-nos todos a ver repetidas situações como a do Aquaparque do Restelo, onde não havia regulamentos técnicos específicos, nem uma fiscalização adequada, e se deixou passar na opinião pública a ideia que tudo funcionava sem qualquer controlo das diversas entidades intervenientes.

97.6.5

Carlos Fontes


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