O caso do afastamento de
Filipe La Féria do Politeama transformou-se numa novela. Se por um lado
traduz a arrogância da política cultural do novo governo, por outro,
revela a escandalosa cumplicidade de muitos críticos que, se remeteram
agora, a um silêncio castrador.
O último argumento, avançado
pelo Secretário de Estado da Cultura, Rui Vieira Nery para o afastar é
que a licença de recinto do Politeama caducou em 1990. Não disse no
entanto que, a do Teatro Nacional S.João e a do Teatro Nacional D. Maria
II caducaram em 1994, a do Auditório Nacional Carlos Alberto em 1990, a
do Teatro da Trindade em 1995, a do Teatro S. Luis e a do Teatro Maria
Matos em 1973 e que o Teatro Nacional S. Carlos nunca a teve, isto só
para citarmos algumas salas pertencentes ao Estado.
Por mais argumentos "técnicos"
que arranje, o que está em causa é uma questão política e não outra.
Pretende-se pôr fim a uma estratégia que vinha sendo desenvolvida para
atrair público às salas ao teatro, substituindo-a por outra de contornos
indefinidos. Durante anos, Filipe La Féria
foi conhecido como um irreverente encenador e autor. Alguns dos espectáculos
que concebeu constituem marcos na história do nosso teatro, como "A
Paixão segundo Pier Paolo Pasolini", de René Kalisky (1980),
"A Marqueza de Sade" do próprio Filipe La Féria (1983), "Botto-Teatro
do Ciúme e do Amor", idem (1984), "A Bela Portuguesa", de
Agostina Bessa Luís (1987) e "Noites de Anto", de Mário
Claudio (1988). Peças representadas numa sala, da Secretaria de Estado da
Cultura, cuja licença caducara em 1973...
Como todos os grupos de
teatro independente, a Casa da Comédia por ele dirigida, assistiu nos
anos oitenta, ao desaparecimento do público. Em 1989, por exemplo, o número
de espectadores destes grupos (207.357) era um terço do que tiveram em
1981! Mais grave foi, talvez, a ideia que se começou a difundir que
associava estes teatros a garagens ou barracas improvisadas e as peças a
pretextos para o gozo estético dos todo-poderosos encenadores.
Face a este panorâma,
apesar do aumento regular dos subsídios, o público diminuía quase na
mesma proporção. Raramente um espectáculo ultrapassava os 3 mil
espectadores. O aumento do número de bilhetes oferecidos tornou-se um
expediente largamente utilizado para apresentar "salas
compostas".
Paralelamente, a situação
não era melhor no denominado teatro comercial, no qual incluiremos a
revista "à portuguesa".
O teatro ligeiro, no qual
pontificava a comédia foi desaparecendo. As salas encerravam
inexoravelmente. O camartelo municipal deitou abaixo um dos seus símbolos,
o Monumental.
O teatro de revista, género
popular por excelência, por onde passaram gerações dos nossos melhores
artistas, não conseguiu, depois de 1974, construir uma nova relação com
o seu público. As experiências inovadoras do Adóque não foram também
capazes de o fazer. O Parque Mayer entrou em ruina. O Capitólio encerrou.
O Variedades e o ABC tornaram-se numa pálida ideia do que foram noutras
épocas. Até um incêndio destruiu o único teatro que possuía uma
actividade regular, o Teatro Maria Vitória, cuja reconstrução não foi
suficiente para lhe dar alma nova. Para muitos dos artistas não restou
outra alternativa de subsistência do que realizarem pequenos espectáculos
na província ou junto das comunidades portuguesas no estrangeiro.
No Teatro D. Maria II, a
situação não era melhor, apesar ter um orçamento sempre assegurado
pelos contribuintes. Fechado grande parte do ano, o público que o encheu
em 1979 (50.173 espectadores), em 1990 não ultrapassava os 14.429
espectadores. O Teatro Nacional de S. Carlos, apesar de orçamentos "records"
nos anos 80, mostrava a mesma tendência.
Na Televisão, o teatro em
português desaparece depois de ter tido uma presença regular desde os
anos 50. O teatro radiofónico eclipsa-se também.
Na SEC, Teresa Patrício
Gouveia (1986-1990), coadjuvado por Mário Barradas, acentuam a
selectividade nos apoios ao teatro. A estratégia malthusiana impõem-se, sob
o argumento que era necessário diminuir o número de grupos existentes.
Chega-se ao ponto de se pretender fundir companhias, como ocorreu no
Porto. Abandonam-se os apoios ao teatro amador, remetendo-o para as câmaras
municipais e o INATEL. Apenas o teatro universitário foi alvo de alguma
atenção, embora pontual.
As estatísticas publicados
pelo INE, apesar de pecarem por defeito, revelam a situação em que se caíu.
Em 1960, por exemplo, o Teatro foi frequentado por 1,153 milhões de
espectadores. Em 1989 por apenas 286 mil, incluindo os espectáculos de
revista. Fora de Lisboa e do Porto, com excepção de Évora, Portalegre e
pontualmente Caldas da Rainha, a actividade teatral era menos que esporádica.
Perante este quadro, em
fins dos anos 80, alguns grupos de teatro independente procuraram uma nova
aproximação ao público, diversificando as suas produções e
linguagens.
Felipe La Féria é neste
contexto, um pioneiro. A comédia, "What happened to Madalena Iglésias
?", ainda na Casa da Comédia retoma mitos do nosso património artístico
de carácter popular. O público ocorre. O espectáculo transfere-se para
o Casino do Estoril e deste para o Parque Mayer. Esteve em cena durante
mais de um ano. O teatro pela primeira vez começara a recuperar público.
O Seiva Trupe, no Porto, segue na mesma linha, com a peça "Cálice
de Porto". Numa encenação de Mário Barroca irá constituir o maior
êxito de sempre do teatro independente, sendo distinguido com vários prémios.
O Teatro de Animação de Setúbal contribui também para esta viragem.
O convite a Felipe La Féria,
em 1992, para trabalhar no D. Maria II é a consequência lógica das
transformações em curso. A produção "Passa Por Mim no
Rossio" -uma homenagem à história da revista Portuguesa -, todos
sabemos o êxito estrondoso que constituiu, goste-se ou não deste género
de espectáculos. A receita parecia ter sido encontrada, para inverter a
tendência dos anos oitenta. Fruto d sua aplicação, o Parque Mayer
reanima-se. A televisão e a rádio retomam o teatro em português. O
teatro infantil, a grande vítima do período anterior, conhece um novo
impulso. O Teatro Infantil de Lisboa (TIL), pela mão de Fernando Gomes,
realiza o maior êxito de sempre - Cinderela-Revista à Portuguesa. O
sentido da festa reaparece nos palcos.
Apercebendo-se das
potencialidades do teatro de carácter popular para aumentar as audiências,
a SEC, apoia pela primeira vez o teatro de revista. E como não se via há
muito em Portugal, aparecem mecenas capazes de investirem avultadas somas
em produções teatrais.
Outras expressões
teatrais, mais seguidas pelo teatro independente, tiram proveito deste fenómeno.
As sinergias tornam-se possíveis. Este teatro, em 1994, regista já
444.397 espectadores, o dobro de 1989...
No ar paira a promoção de
Lisboa, como Capital Europeia da Cultura (1994) e arrancam as obras da
Expo98. Acreditava-se que o primeiro acontecimento fosse capaz, só por
si, de gerar novos públicos, nomeadamente para o teatro.
É neste contexto que
Filipe La Féria avança para a recuperação do teatro Politeama, há
muito transformado num cinema "porno". A SEC, à semelhança de
outros mecenas, investe nas obras e equipamento. Desde pelo menos o antigo
SNI que operações deste género foram feitas com regularidade em
milhares de recintos culturais.
A primeira produção com
que abre - "Maldita Cocaina" -, evoca Lisboa dos anos vinte.
Apesar do êxito que constituiu, tem custos tais que, dificilmente podem
ser sustentados, sem um forte apoio do Estado. A recuperação do
Politeama representara um pesado investimento que as receitas de
bilheteira não compensam. A produção seguinte " D. Afonso
Henriques a Mário Soares", embora com custos mais limitados,
continua a não permitir sonhar com a sobrevivência imediata do projecto,
dadas as dívidas acumuladas. Pensando na viabilidade da empresa que
montara, Filipe La Féria diversifica a actividade, começando a produzir
com regularidade, espectáculos para a televisão. Cedência que a actual
equipa governativa parece não compreender.
Com a mudança de governo,
em Outubro de 1995, são nomeados para a área da cultura, duas
personagens sem a menor sensibilidade para a pluralidade das expressões
teatrais que constituem o nosso teatro e para os seus problemas específicos.
Os seus horizontes, reduzem-se aos limites da filosofia universitária e
da música antiga. O Ministro e o seu Secretário de Estado, repetidamente
manifestam o seu desprezo pela questão do aumento de audiências no
teatro, como aliás no cinema português. Na linha do Programa Eleitoral
do Partido Socialista, as suas preocupações centram-se na criação de
enigmáticos "públicos especializados". Nos novos critérios de
apoio ao teatro profissional ( Despacho Normativo 43/96, de Novembro), é
logo desvalorizado os aumentos das audiências em favor da antiguidade dos
grupos. Consagra-se a continuidade dos apoios do Estado a grupos de teatro
que sempre os tiveram, mas agora não considerando os seus resultados.
Esta visão aristocrática da cultura, com o dinheiro dos contribuintes,
coloca a tónica dos discursos na definição de critérios na distribuição
dos subsídios, esquecendo a definição de políticas culturais que
tragam novos públicos ao teatro ou estimulem novas ofertas culturais.
Filipe La Féria pelo que
simboliza é neste contexto um adversário a abater. Em 1996 é nomeada
uma Comissão de Inquérito ao Politeama . As "conclusões" do
Inquérito vão sendo difundidas na imprensa, antes do mesmo de estar
concluído. Ameaça-se com o seu encerramento, antes de ser comunicado ao
interessado as ocorrências constatadas no Auto de Vistoria. Todos os
contratos podem ser prorrogados no tempo, ou mesmo perdoadas todas as dívidas,
como Governo pretendia fazer no caso do "cinenegócio". Nunca
com as Produções Filipe la Féria.
Outros grupos, como O
Bando, TAS, Cassefaz, TEP, Teatro do Noroeste, TIL, são preteridos nos
apoios concedidos pelo Estado. Argumenta-se que possuem direcções artísticas
incipientes e que fazem frequentes cedências ao gosto popular.
Após ano e meio sobre o
inicio da nova política, os resultados começam a surgir. Apesar do aumento
dos subsídios, o número de espectadores foi em 1996 menos de 100 mil que
em 1995. O número de borlas aumentou. O número de peças de autores
portugueses voltou também a diminuir
A actual política cultural
na área do teatro, voltou assim à anterior delimitação de coutadas
pelos "lobbies" instalados no aparelho de Estado. Quem ficou a
perder foi o teatro, na diversidade das suas expressões para os
diferentes tipos de público, para quem afinal ele se destina.
1997.6.24
Carlos Fontes
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