Evolução dos Conceitos

 

As abordagens sociológicas da cultura frequentemente enfermam de preconceitos elitistas, nomeadamente quando identificam a "cultura de massas" como a perversão da própria cultura. Hoje o problema centra-se em volta da questão da diversão. Durante séculos ela foi encarada como uma das componentes da cultura, mas hoje está transformada na expressão mais difundida do seu conteúdo.

1. Cultura Erudita/Cultura Popular

A maioria dos historiadores actuais continua a estabelecer a partir do século XVI uma distinção entre "cultura erudita" e "cultura popular". Em relação ao período anterior esta distinção parece não ter existido. Terá havido um grande  circulação de ideias entre as várias formas de expressão cultural, o que esbateria as suas fronteiras. O século XVI funciona como uma data de referência para assinalar o momento a partir do qual se reconhece que distinção entre grupos sociais se traduz também de forma nítida em termos de gostos e consumos culturais.

2. A Cultura Popular

O conceito de cultura popular é contudo recente, está intimamente associado ao processo de urbanização que ocorre a partir do século XVIII, e ao despertar uma outra forma de cultura- a cultura de massas. A cultura popular, divulgada pelo romantismo, ocupará no imaginário da burguesia oitocentista as memórias de uma sociedade que estava a desaparecer. Neste imaginário aparece retratada uma cultura feita por camponeses. Símbolo de um povo idealizado, puro e feliz na sua ignorância. Trata-se de uma imagem que é a antítese das massas de operários e pobres que se arrastam pelas cidades em vias de industrialização.

A imagem deste "povo"- actor desta cultura, identifica-se aos olhos dos românticos com o espírito nacional. Os seus usos, costumes, romances, cantares dão origem a um conceito novo de "Folclore", expressão deste saber ancestral preservado pelo povo.

A cultura popular surge frequentemente decomposta nas suas múltiplas manifestações, como sejam: a arte, o teatro, o folclore, a música, arquitectura, as festas e romarias, a culinária, a poesia, os jogos, os divertimentos. Uma panóplia de saberes pré-industrais.

O conceito de cultura popular apesar de persistir, revela-se hoje profundamente limitativo para descrever a própria realidade social dos campos. As comunidades rurais estão impregnadas de valores próprios da cultura de massas, sem no entanto terem abandonado por completo as suas referências culturais. Constituem já uma cultura intermédia em fase de rápida integração na cultura de massas.

2. A Cultura Erudita

Por oposição ao conceito de arte popular, a partir do século XVI ter-se-á consolidado uma cultura erudita, alta cultura ou cultura cultivada, própria dos grupos sociais dominantes.

O traço mais importante desta cultura devia-se ao facto dos grupos dominantes serem os mecenas e os principais compradores das obras produzidas pelas elites dos criadores culturais.

A situação começou a ser rapidamente alterada após a segunda guerra mundial. As diferenças na fruição das artes passaram a ser feitas em função de grupos culturais, que não coincidem necessariamente com grupos sociais.

Nunca como antes foi tão evidente a importância dos críticos, historiadores de arte, curadores e outros públicos especializados na selecção dos criadores de vanguarda como a influenciarem a compra das suas obras pelos grupos sociais dominantes ou pelas instituições públicas

A explicação para este divórcio entre os grupos dominantes e os artistas de vanguarda, teremos que a procurar na natureza hermética das propostas estéticas das novas correntes artísticas.

2.1. Trocas

Entre o século XVI e o século XVIII predominou a concepção de que a cultura, funcionava de forma descendente, isto é, das elites para o povo. Apesar do aparente isolamento entre o povo e a nobreza, as trocas eram frequentes em sentido inverso. Alguns grupos intermediários, como os artesãos, actores, músicos, cantores, o baixo clero e os serviçais, como as amas, terão contribuído para este movimento ascende da cultura.

3. A cultura de Massas

O desenvolvimento da urbanização desenraizou as populações rurais das suas formas culturais identitárias. Nas grandes cidades estas populações forçadas a conviverem para sobreviverem começaram a construir novas formas de expressão cultural.

Nos países industrializados, o aumento da produção, dos tempos livres e dos rendimentos familiares traduziu-se num consumo em larga escala, nomeadamente de produtos culturais. No século XX assistiu-se ao nascimento de uma das mais importantes industrias, a industria cultural.

3.1. O problema ideológico

A cultura de massas, é frequentemente apontada como um subproduto da cultura dominante. Tese fundamental das correntes marxistas. Esta tese  tem sido objecto de contínuas revisões, destacando-se autores como  Pierre Bourdieu ou Michel de Certeau .

Em tudo o caso, a dimensão global da cultura de massas está ainda pouco estudada.

3.2. Vertentes

A maioria dos estudos sobre a cultura de massas tende a apontar algumas vertentes como indissociáveis da cultura de massas: a tecnologia, a comunicação de massas, a densificação das imagens, a sociedade espectáculo, a diversão, o primado dos gostos massificados e ultimamente a globalização.

3.2.1. Tecnologia

Desde o século XIX, que a cultura de massas está intimamente ligada ao progresso tecnológico que permitiu:

 a) Embaratecer o preço dos produtos democratizando o seu consumo.

 b) Desenvolver as tecnologias de reprodução e comunicação, possibilitando desta forma criar meios adequados à expansão de uma cultura de massas, como a difusão da imprensa, a rádio, o cinema, a industria discográfica e a televisão. 

Entre as características que costumam ser associadas à cultura de massas destacam-se a padronização, o conservadorismo estético e a manipulação de bens de consumo através da publicidade.

3.2.2. Comunicação de massas

A comunicação de massas constituiu a expressão mais visível da cultura de massas. A imprensa, o cartaz, a publicidade e a propaganda, a banda desenhada, a rádio, o cinema e a televisão fazem parte dessa panóplia dos seus meios.

3.2.3. Primado da gostos massificados

Tocqueville,  início do século XIX, analisando a sociedade americana constatava que na mesma ocorria um processo de nivelamento cultural por baixo. Imitava-se tudo o que hábeis artesãos produziam, mas secundarizava-se a perfeição dos produtos. O objectivo dos produtores era tão somente o de reduzir os custos destes produtos de forma a torná-los acessíveis a largas massas de consumidores. Estas imitações baratas destinavam-se a consumidores com reduzidos recursos económicos e de baixa formação cultural. As elites culturais criticavam então estas opções económicas, afirmando que as mesmas estavam a gerar uma sociedade de cretinos com gostos aberrantes. Neste capítulo as críticas continuam a ser mas mesmas.

Os novos produtos culturais passaram a utilizar um estilo novo para veicularem a informação e proporcionarem o entretenimento: insistiam em acontecimentos e emoções cada vez mais chocantes e com conteúdos demasiado elementares. Em vez de se elevar a capacidade de  entendimento do público, afirmavam os críticos anteriores, estava-se a rebaixar as suas capacidades intelectuais. Neste capítulo as críticas continuam também a ser as mesmas. 

3.2.4. Densificação das imagens

A cultura de massas é frequentemente associada a uma cultura de imagens. As imagens perderam o seu estatuto de raridade e banalizaram-se, vulgarizando tudo. A avalanche de discursos e as imagens que circulam no espaço público tornam as coisas, os objectos, os acontecimentos e as pessoas in-significantes devido ao excesso de sentidos que provocam (Henry-Pierre Jeudy).

3.2.5. A sociedade espectáculo

Num texto que marcou uma época Guy Debord começava por afirmar: "Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção anuncia-se como uma imensa acumulação de espectáculos. Tudo o que era directamente vivido, afastou-se numa representação." A sociedade da massas, acabou também por esvaziar o conteúdo do espectáculo, gerando um simulacro de espectáculo.  Os actores tornaram-se simulacros de actores, os textos simulacros de textos, etc (Jean Baudrillard). O Vazio instalou-se nas nossas sociedades. O discurso é conhecido.

3.2.6. Diversão

A diversão é frequentemente a principal característica positiva associada à cultura de massas. Ela cumpre uma função social importante num quotidiano que se afirma ser insuportável. Funciona como um escape, uma libertação de energias e recalcamentos.

O homem contemporâneo costuma chegar à conclusão de que a sua vida foi esvaziada de significado, trivializada. Ele sente-se alheado dos eu passado, do seu trabalho, da sua comunidade e , possivelmente, de si mesmo - embora o seu "eu" seja difícil de localizar. Ao mesmo tempo, tem nas suas mãos uma dose sem precedentes de tempo, que, como assinalou Van Den Haag, precisa matar para não ser morto por ele. A sociedade detesta o vácuo, e procura preenchê-lo rapidamente através da diversão. O vazio de ideias e sentido ameaça, por dentro, o homem moderno.

É por isso que a diversão ter-se-ia, mais do que em qualquer outra época histórica, tornado um instrumento de poder fundamental de "entorpecimento das massas". 

3.3. Críticas

As elites culturais desde o século XIX que de forma sistemática tem vindo a denunciar a cultura de massas, como a responsável pela difusão de uma cultura de idiotas.

Escritores, filósofos e sociólogos como Tocqueville, Flaubert, Eça de Queirós, Ortega y Gasset,  Orson Welles, Huxley, Jean Baudrillard, Umberto Eco e tantos outros, produziram obras onde denunciam os malefícios desta cultura de multidões. Uma das ideias mais frequentemente difundidas é que a humanidade estaria a caminhar para uma incultura generalizada, malgrado todos os progressos tecnológicos.

3.3.1. Os Divertimentos mais populares do passado

A brutalização da cultura contemporânea não tem qualquer justificação histórica. Alguns historiadores tem posto em relevo que a maioria dos divertimentos anteriores ao século XIX primavam pela brutalidade, a cultura erudita foi sempre minoritária e apenas apreciada por uma elite entre as elites sociais.

Três exemplos:

 Em Inglaterra, um dos divertimentos mais populares até ao século XIX, foi o açulamento de cães contra ursos acorrentados.

 Em Portugal e Espanha a toiradas de morte ou as execuções públicas.

Em toda a Europa os espectáculos de ópera, teatro ou dança estavam longe de terem espectadores particularmente atentos.

3.3.2. As elites culturais/elites mediáticas

O progressivo impacto da cultura de massas alterou o estatuto dos criadores culturais. 

A cultura cultura de massas não é produto de simples artesãos que trabalham para para satisfazer pessoas que conheciam as necessidades e os hábitos de vida. É, pelo contrário, produto de técnicos e artistas formados em escolas de artes que concebem produtos destinados a explorar os desejos de consumidores anónimos por empresas industriais. Neste aspecto, esta forma de cultura distingue-se claramente das restantes.

O impacto da comunicação de massas alterou também a relação do público com as elites. As capacidades de um criador ou um artista passaram a ser valorizadas em  função da sua projecção mediática. Actualmente futebolistas, cantores, apresentadores de televisão, etc. são chamados a comentar acontecimentos ou eventos culturais, para os quais não tem qualquer conhecimento especifico.  A importância do que afirmam não decorre da sua competência técnica ou científica na matéria em causa, mas tão só, do facto de serem reconhecidos por vastas audiências. Entre os artistas plásticos, passou a existir um novo tipo artista: aquele cuja projecção da obra resultou de uma eficiente gestão da sua promoção no circuito internacional.

A principal ameaça que a cultura de massas representa para a cultura de vanguarda decorre do seu predomínio avassalador.  Corremos o risco de todos os criadores serem absorvidos pela sua infernal lógica produtiva. A cultura de massas pode transformar todos os criadores em simples produtores de objectos para o grande consumo.

Lisboa, 2000

Carlos Fontes


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