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História da Formação Profissional e da Educação em Portugal

Carlos Fontes

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Idade Contemporânea - (Séc.XIX)

Difusão do Conhecimento -Literatura Técnica e Didáctica

        

         No século XIX , a literatura técnica e de apoio á f.p. adquire uma dimensão e variedade  considerável.

 1. O ensino da caracter expositivo e repetitivo era desde a idade média o modelo mais seguido. Na maioria das vezes nem sequer os alunos liam os livros "adoptados", mas limitavam-se a "registar" as palavras do mestre ou dos "repetidores" ( os Assistentes) nas aulas. Já contra este modelo se havia insurgido Marques de Pombal aquando da reforma da Universidade de Coimbra em 1772:  No Livro I, Título III, cap.I, & 83, proibia-se que nas aulas se inscrevessem as lições dos respectivos mestres. As "Postilas" ou "Apostilas" deveriam de ser banidas valorizando-se deste modo, o uso dos manuais de ensino. Em 1895, por Portaria do Reitor D. Francisco Rafael de Castro[1], mais transigente procede á sua regulamentação. Durante o periodo Vintista esta questão voltou de novo a estar na ordem do dia. Mas de nada valeu, o sistema aperfeiçoou-se se surgiu a célebre "Sebenta", simbolo de um ensino não baseado em livros, mas em apontamentos ditados do alto da cátedra.

    Eça de Queirós traçou-nos um quadro do ambiente escolar de Coimbra onde imperava a sebenta:

    "O seu autoritarismo, anulando toda a liberdade e resistência moral; o seu favoritismo , deprimindo, acostumando o homem a temer, a disfarçar, a vergar a espinha; o seu literatismo, representado na horrenda sebenta, na exigência do IPSIS VERBIS, para quem toda a criação intelectual é daninha"[2]

     Trindade Coelho, em fins do século XIX, em "In illo Tempore ", como ninguém descreve-a nestes termos:

      "No tempo em que eu andava em Coimbra, ainda a boa e imortal sebenta reinava em todo o seu esplendor ! Eu nem fazia sequer ideia , ao chegar a Coimbra, do que vinha a ser isso de sebenta ; mas, industriado logo a tal res-peito, vim a saber que era uma espécie de folhinha litografada, formato 8o , que saia todos os dias compendiando a explicação do lente; que se chamava "sebenteiro" : o que a redigia; que custava  sete tostões por mês cada uma; que eram três em cada ano, visto as cadeiras em cada ano serem tres; e, finalmente, que, enquanto o lente explicava a lição para o dia seguinte, só o sebenteiro ouvia o lente, e que os mais , todos, e eu portanto, podiam muito bem ler o seu romance, fazer o seu bilhetinho e passa-lo, ou comentar os que vinham dos outros --- ou então, se o preferissemos, dormir ou fazer versos !"

       Os manuais, quando existem são frequentemente ignorados para dar aos apontamentos das prelecções do mestre. Era assim na Universidade, mas é assim também noutros níveis de ensino.

 2.  As ideias iluministas prolongaram-se ao longo de todo o século XIX, nomeadamente através do gosto de sistematizar e divulgar as artes, ciências e industrias que faziam o progresso dos povos. No inicio do século destaca-se desde logo os " Annaes das Sciencias , das Artes e das Letras", escritos por Solano Constâncio, e por uma  sociedade de portugueses residentes em Paris, entre 1818 a 1822, e que reflecte claramente este ideário; Mas outras iniciativas ao longo deste periodo, são igualmente expressões destas ideias como: a "Colecção de instruções sobre agricultura , Artes e Industrias" ( 1831‑1832 ); o "Archivo dos Conhecimentos Uteis" , periodico mensal destinado a promover a Agricultura e a Industria de Portugal e do Brasil ( Paris, 1837) , e o "Panorama"  ( 1837- 1868 ), uma das mais belas revistas portuguesas do século;  a "Revista Universal Lisbonense" ( criada em 1841) ; "Gazeta Illustrada ", revista semanal de vulgarização cientifica, artistica e literária, criada em Coimbra ( 1901 ou 1900 ? );        

 3. Em meados do século este movimento de vulgarização cientifica e tecnica, na "agricultura ",no "comércio" e na "Industria" foi sendo superado  por um outro se centrou em preocupações especificas de cada uma destas actividades.

      Na Agricultura este movimento já foi estudado[3]. Ressaltando o caracter irradiante: paralelamente ao aparecimento de jornais ou revistas sobre agricultura,  promoveram-se exposições agricolas, a edição de manuais ou literatura tecnica, multiplicaram-se as conferencias de divulgação dos novos progressos tecnicos, a edição de catálogos sobre as novas  alfaias e produtos para a agricultura. Este movimento foi acompanhado da estruturação do ensino na agricultura.

4. A expansão do ensino técnico a partir de 1852 foi o verdadeiro motor entre nós da expansão da literatura técnica. Numa primeira fase neste ensino, para além de raros manuais em portugues, o que preponderou foram as obras francesas, mas só acessivel a uma reduzida minoria de mestres e alunos devido ás dificuldades  de compreensão da lingua; Lentamente ao longo do século foram surgindo um grande numero de traduções , e obras de autores portugueses. Entre as obras editadas entre 1800 e 1910, se não cabe nas nossas intenções registar sequer os titulos mais significativos, no entanto, podemos distinguir grandes áreas de edição que reflectem as novas preocupações:

Agricultura: Guia e Manual do Cultivador, ou Elementos de Agricultura, José Maria Grande (1849);Cathecismo Popular ou Pequena Encyclopedia Agricola para As Escolas Primáriase Para as Quintas de Ensino, Silvestre Bernardo Lima (1856); Tratado das Abelhas, Fr. J. Marrano Velloso, 1800; Colecção de Instrucções Sobre Agricultura, Artes e Industrias, Lisboa,1831;  O Livro do Lavrador, António Augusto Aguiar e Andrade Corvo. 1a. Parte; Manual Pratico de Agricultura, Paulo de Moraes, 2 tomos,1896;

    Desenho:

    Marinha E Construção Naval: Guia de Instrução Profissional do Marinheiro, Victorino Gomes da Costa, Lisboa,1897 ; Livro de Fabrica das Naos, Lopes de Mendonça,1898;

     Veterinária: Elementos da arte Veterinária, traduzido do frances, Lisboa, 1821‑1822 ; Arte Mestra (criação de animais ), Lisboa,1840; Compendio de Veterinária, Macedo Pinto, 1854;

   Oficios Vários:  Compendio de Alveitaria, F. de Sande e Castro, Lisboa,1832 ;  Como se Fabrica o Queijo, Joaquim Rasteiro. Livros do Povo , Séc. XIX ; Manual do Sapateiro, autor ? ,Lisboa, 1854;

4."Bibliotecas"

 Algumas editoras iniciam as séries de livros, em volta de temáticas técnicas são as chamadas "bibliotecas".

     Uma das primeiras deveu-se á Associação Promotora da Industria Fabril, criada em 1860,e da qual derivará a Associação Industrial Portuguesa. Sob a direcção do seu presidente Fradesso da Silveira promoveu a edição da "Biblioteca das Fábricas", na qual eram estudadas as diversas industrias do pais, e se publicaram obras de iniciação á industria dos lanificios, papel, linho e sericultura.   

     Outra importante iniciativa neste ambito, deve-se ao então ministro das Obras Publicas, Bernardino Machado, que em Junho de 1893, criou a Biblioteca Nacional Agricola, destinada a apoiar a difusão de conhecimentos agricolas entre a população rural, e a garantir os suportes de informação minimos ao ensino agricola. Para além de promover a edição de obras agricolas de autores como Elvino de Brito, Veríssimo de Almeida, Visconde de Vilarinho afim de serem distribuidas pelas escolas e outros estabelecimentos de ensino.

        A livraria Bertrand fica a dever-se  a edição da prestimosa " Biblioteca de Instrução Profissional", fundada em 1904 por Tomás Bordalo Pinheiro ( 1861 ‑1921), criador de outra popular biblioteca "Livros do Povo". Esta Biblioteca foi até aos anos 60, a mais importante colecção de livros técnicos do pais. Surgiu inicialmente sob a forma de de uma colecção de fasciculos semanais, denominada "Manual do Operário", abordando temas como Aritmética, desenho linear e de máquinas, fisica,  mecanica, electricidade, descrição de industrias e outros. As folhas eram depois reunidas formando os respectivos volumes. Pouco passou para que a colecção adopta-se outro sistema passando a publicar os célebres volumes, de que sairiam mais de 60 titulos, alguns dos quais com muitas reedições. Muitos destes volumes, foram adoptados nas escolas técnicas , em quase todos os níveis durante quase meio século.. Entre os autores mais  produtivos estava João Emilio dos Santos Segurado, que no âmbito da construção civil produziu  considerável numero de manuais: Edificações, (1905), Terraplanagens e Alicerces (1905), Alvenaria e Cantaria ( 1905), Trabalhos de Carpintaria Civil ( ano ? ) , Encanamentos e Salubridade das Habitações ( 1913), Acabamentos de Construção ( 1915), Cimento Armado ( 1918), Materiais de Construção , 2 Vols ( 1924), para além de obras como "Serralheiro Civil ( 1905), na mesma colecção. Outras obras  importantes, foram o Manual do Electricista (  ano ? )de Alberto de Castro Ferreira, com pelo menos 5 edições em 1925. Títulos como "Manual do Aprendiz de Relojoeiro", de Francisco Barbosa, não deixaram de revelar processos técnicos que resistiram ao tempo.

      5. Esta explosão do livro técnico, foi acompanhada por o aparecimento de autores que se revelaram pela sua abundante produção. Raul Dória, destacou-se desde logo pela sua abundante produção de livros didácticos para o ensino comercial, eís alguns dos seus titulos editados: Diccionário Pratico Comercial, Porto. 1905; Guia de Escrituração Comercial, 1905; Noções Gerais de Comercio. Porto.1913; Noções Gerais de Comercio e Escrituração Comercial, Porto.1913; Noções Especiais de Comercio. Porto.1914; Dicionário Pratico de Comercio. Porto,1914; Problemas de Escrituração Comercial.Porto.1916; Estudos Comerciais, 4 vols.1919. Entre os autores desta literatura didactica, podemos encontrar desde o artesão ao ministro, como António Augusto Aguiar, Elvino de Brito, etc.

      6. A especificidade dos manuais pedagógicos acabou por se evidenciar pouco a pouco, pois deles dependia em grande medida a qualidade do ensino ministrado.

       A primeira preocupação oficial centrou-se na questão da adopção dos manuais para as matérias de ensino, qque de algum modo mais facilmente fossem susceptíveis de veicularem conteúdos ideológicos: a história, a filosofia, literatura...

Assim, se entre 1836 e 1895 vigorou o regime do livros multiplo, com o reforço da repressão instituida pelo governo conservador de Hintze Ribeiro e Joaõ Franco impôs-se a partir desta data a adopção do livro único.

       "Em 1895, o exame e selecção dos livros a adoptar ( nos Liceus) é maioritariamente atribuída a professores universitários, sendo imprescíndivel a superior aprovação do Conselho Superior de Instrução Publica"[4].

       O Estado e a Universidade de Coimbra passavam a controlar os recursos didácticos dos liceus, e deste modo o conteúdo nas disciplinas mais susceptiveis de abertura de ideias.

        Em 1905, na sequencia de intensa polémica, volta-se de novo ao regime de livro múltiplo que se mantém até 1936, quando é reintroduzido o livro unico pelo decreto de 11 de Abril do ministro  Carneiro Pacheco.

       Borges Grainha, em 1905, aborda a questão longamente desses "mestres mudos que ensinam os que os leem-- os livros". Mas, "Uma coisa são livros escolares, e outra os outros livros. Naqueles exigem-se certos requisitos que estes não demandam". Para este autor, os manuais escolares deveriam obedecer ás seguintes condições:

       -- Estarem adaptados á capacidade dos alunos que por eles tenham que estudar.

        -- Estarem adequados aos métodos dos professores que deles se hã-de servir como auxiliares  do ensinamento oral.

      Uma boa escolha  do manual não resolve tudo, pois segundo Borges Grainha ,a questão  de fundo  não está na adopção de  manuais, mas na preparação do professores.

      "Porque o bom professor sabe escolher o livro melhor para os seus alunos de ocasião, cuja utilidade ele pode avaliar praticamente dia a dia, ao passo que o mau professor nem saberá utilizar-se dum livro excelente que lhe façam  adoptar".

      Mas os manuais escolares deverão igualmente corresponder a outras exigências, como os programas de ensino que forem adoptados. Ora, os programas podem ser apenas uma listagem resumida de temas a abordar, e neste caso o papel do professor torna-se decisivo no seu desenvolvimento, ou pelo contrario ter um caracter impositivo, limitando-se o professor a seguir passo a passo o que lhe  é prescrito. Num caso ou no outro, termos uma diversidade e variedade de manuais procurando eles mesmos dar corpo ao programa adoptado, ou um conjunto de manuais rigidamente estruturados.    

       Se a escolha do manual constituiu um falso problema para a qualidade do ensino, a escolha de um manual único, pode ser mesmo um sério entrave á inovação pedagógica: Citando Adolpho Cinquini, escreve Borges Grainha:

      "A falta de liberdade na escolha dos livros escolares, por um lado, prende as iniciativas dos bons professores, impedindo-os de progressos e inovações no ensino, e, por outro, de nada vale contra os maus professores, porque estes no ensinam bem, nem com maus nem com bons livros. O livro, é um ser inerte que necessita ser vivificado pelo professor, e, se o professor não  tem capacidade para lhe dar vida, por melhor que o livro seja, de nada vale em tais mãos".

Em construção !

  Carlos Fontes

Navegando na Educação

Notas:

 

[1]. O Conimbricense, n.5298, 23 de Agosto de 1898

2]. Eça de Queirós,Prosas Barbaras, 4. Edição, Livraria Chardron, Porto.1919, pag.147.

3]. Maria de Fátima Nunes, Charruas de Dombasle, , in, O Estudo da História, n.7,8,9.1988/89.APH

4]. Sérgio Campos Matos, O Manual de História como Lugar de História, in, O Estudo da História, n.7,8,9. 1888/89.