Expresso, 1/06/2002.
A meio mundo de distância de
Portugal, a Austrália afigura-se um continente longínquo e exótico que pouco
ou nada tem a ver com a realidade portuguesa. Porém, não fosse o Tratado de
Tordesilhas, muito provavelmente a Austrália seria agora mais um País de Língua
Oficial Portuguesa (PALOP).
Ainda mal Portugal celebrava a
descoberta do Brasil, já Cristóvão de Mendonça, em 1522, trazia notícias de
um imenso e rico continente a sul de Timor. A astúcia dos portugueses em
convencer os espanhóis a mudar para oeste a linha do Tratado de Tordesilhas era
agora de uma ironia cruel. O portugueses tinham ganho o Brasil, é certo, mas a
grande parte do continente de Mendonça ficava agora para lá do Meridiano de
Tordesilhas, fora do alcance de Portugal.
Ainda hoje, a simples análise de um
mapa denuncia os vestígios da presença portuguesa na região. A costa noroeste
da Austrália revela o nome Abrolhos, que não é mais do que a reminiscência
de uma frase portuguesa que ecoa, através dos tempos, os gritos dos marinheiros
portugueses ao navegarem por estas águas traiçoeiras: «Abre os olhos!» A própria
fronteira terrestre da Austrália Ocidental, feita à boa maneira anglo-saxónica
de delinear fronteiras a régua e esquadro, não é mais do que o malfadado
meridiano de Tordesilhas.
Quis assim o destino que os
portugueses só regressassem a este continente quatro séculos depois da sua
descoberta por Cristóvão de Mendonça.
Os pioneiros da imigração
portuguesa na Austrália foram os madeirenses que na década de 50 estabeleceram
uma pequena comunidade piscatória na cidade de Fremantle, na costa ocidental.
Desde então, os portugueses continuaram a chegar à Austrália em número
sempre crescente até aos anos 90, altura em que muitos começaram então a
regressar a Portugal.
De acordo com o recenseamento de
1996 levado a cabo pelo Australian Bureau of Statistics, a Austrália contava
nessa altura com cerca de 17 mil pessoas nascidas em Portugal e mais cerca de
nove mil descendentes de portugueses, que em conjunto representavam uns meros
0,15% da população australiana
Apesar de pequena, a comunidade
portuguesa encontra-se razoavelmente bem organizada. Em cidades como Perth,
Melbourne ou Sydney, é possível encontrar centros culturais e recreativos,
restaurantes e até bairros inteiros onde se pode falar exclusivamente a língua
de Camões, comer um pastel de bacalhau seguido de uma bica e rematar com um
pastel de nata.
Aliás, a gastronomia é a imagem de
marca da comunidade portuguesa na Austrália. O nosso humilde frango no
churrasco, conhecido nestas paragens como «portuguese piri-piri chicken», tem
«arrasado». O tradicional pastel de nata, ou «portuguese custard tart», é
hoje servido em muitos restaurantes e cafés de Sydney, e também tem caído no
goto dos australianos. Um pouco por todo o lado, os restaurantes portugueses
multiplicam-se e as cadeias portuguesas de pronto a comer Nando's e Oporto
encontram-se em franca expansão, contando com mais de 60 lojas a nível
nacional.
Mas a exuberância gastronómica
esconde uma realidade preocupante revelada pelas estatísticas de 1996: 61% da
comunidade portuguesa não possui habilitações literárias ou qualificações
profissionais de qualquer espécie. Só uma minoria de portugueses, 28%, tem
alguma forma de qualificação, contra uma média nacional de 42,3%.
Se, por um lado, a falta de
qualificações impede a comunidade portuguesa de ter um papel mais relevante na
sociedade australiana, por outro lado é essa mesma falta de qualificações que
mantém a comunidade empregada, dada a abundância da oferta de trabalho para mão
de obra não qualificada. Os dados de 1996 mostram claramente este paradoxo, com
a taxa de desemprego da comunidade portuguesa situada sete pontos percentuais
abaixo da média nacional de 9.2%. Regra geral, a mão-de-obra não qualificada
é razoavelmente bem paga e a grande maioria dos portugueses consegue manter um
nível de vida igual - e por vezes superior - à média australiana.
Mas a comunidade portuguesa conta
também com profissionais altamente qualificados, como médicos, advogados e
docentes universitários, que muito têm contribuído para a causa lusitana. A
sua presença é, no entanto, discreta, e a sua visibilidade dentro e fora da
comunidade bastante reduzida. Não só por serem em menor número mas também
porque, ao integrarem-se melhor na sociedade australiana, fazem que as suas raízes
étnicas deixem de ser perceptíveis.
Quanto à segunda geração da
comunidade portuguesa na Austrália, cedeu vítima da distância que a separa de
Portugal. Em grande parte alheada das realidades do Portugal contemporâneo, os
descendentes dos imigrantes portugueses encontram-se em franco processo de
assimilação pela sociedade australiana. Isto está longe de significar o fim
da influência lusitana pelas terras de Mendonça. Uma nova vaga de portugueses
altamente qualificados está a chegar à Austrália e promete abrir um novo capítulo
na história das relações entre os dois países. E há, também, australianos
que muito têm feito pela imagem de Portugal. Um deles é Kenneth Gordon
McIntyre, de 95 anos e com duas condecorações do Estado português. Enquanto
professor de Literatura Inglesa na Universidade de Melbourne, McIntyre
apaixonou-se pela obra de Camões, o que o levou a estudar português, como
autodidacta. A sua crescente curiosidade pela cultura e história portuguesas
culminou, em 1977, com a publicação do livro «The Secret Discovery of
Australia». Com uma argumentação impressionante, a obra restitui a Cristóvão
de Mendonça o seu devido lugar na história mundial, como o legítimo
descobridor da Austrália. Após a publicação, o livro foi utilizado como
manual escolar na Austrália, tendo contribuído significativamente para a
reabilitação da imagem de Portugal durante os anos da crise diplomática entre
Portugal e a Austrália. O livro encontra-se traduzido para português e foi
publicado em 1989 pela Fundação Oriente.
1