Universalismo
A filosofia dirige-se a todos os homens e
não a nenhum em particular. O filósofo expressa a
voz de um Homem no mundo. Esta é a essência da filosofia.
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Em Portugal, o ensino da filosofia e o
acesso da população em geral à Filosofia foi sempre encarado de modo muito
elitista. As elites culturais do país temendo os desvios à ortodoxia dominante
nunca promoveram a divulgação das obras dos grandes filósofos, mas apenas os
comentários que elas próprias ou outros faziam sobre as mesmas.
As
universidades portuguesas ainda hoje não possuem uma linha de tradução e
divulgação dos grandes clássicos da filosofia, dir-se-á que continuam recear as
consequências que podem ocorrer do acesso da população a estas obras na língua materna.
Comungando
há séculos desta visão elitista, a Igreja Católica Portuguesa, dominante no
país, também nunca
se deu ao trabalho de divulgar as obras dos principais pensadores cristãos. Limita-se
igualmente a promover os seus comentadores ou obras de catequese. Resultado: Se um católico
português quiser ler os grandes textos que formaram o pensamento cristão,
se não tiver acesso às suas traduções
no Brasil,
só o poderá fazer em francês, inglês, islandês, polaco, chinês, japonês,
etc.
Compreender o pensamento de um filósofo implicou sempre a
renuncia, ainda que temporária, ao português.
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Ainda há bem pouco tempo, os textos que
os alunos tinham que comentar, por exemplo, no ensino superior, deviam ser feitos na língua
materna dos autores (grego, latim, francês, inglês, russo, etc). Todas as traduções eram encaradas como traições ao espírito e
à letra da obra.
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O acesso à universalidade do debate
filosófico pressupunha assim o domínio de uma multiplicidade de línguas.
Exigência a que só poderiam aspirar na prática um
grupo muito restrito de poliglotas.
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A grande maioria dos leitores e amantes
da filosofia, contentava-se
com comentários em português sobre obras escritas noutras línguas, cujo
acesso lhes era vedado na sua língua materna.
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Nos próprios manuais escolares do ensino
secundário, ainda hoje é corrente este pressuposto. Nas bibliografias que
são indicadas para os alunos que iniciam o seus estudos, por volta dos 15 anos,
surgem com frequência obras em latim, alemão e outras línguas pouco faladas
entre nós. Em alguns casos, chega-se ao disparate fazer referências
bibliográficas a manuscritos apenas acessíveis em recônditos bibliotecas no
estrangeiro, ou a mencionar edições raríssimas no mercado internacional. Tudo isto apesar de existirem
em português, por vezes, excelentes
traduções.
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Chegamos ao ponto, de numa língua falada
por mais de 240 milhões de pessoas em todo o mundo, continuarem a não
existirem traduções acessíveis de muitos dos grandes clássicos da filosofia.
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Estamos perante uma
atitude cultural que traduz
não o conceito de universalização da filosofia - o tornar acessível a todos
as grandes questões da humanidade -, mas um modo singular de entender o saber como um instrumento de poder. Resquícios de uma tradição elitista,
e
profundamente anti-democrática que ainda percorre a sociedade
portuguesas, onde lentamente as suas instituições vão dando sinais de
uma efectiva abertura ao mundo.
Carlos Fontes
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