Vivemos numa época que aceita como um dado adquirido que os
valores estão em crise. Em todas as épocas sempre surgiram vozes
manifestando idênticas impressões. A nossa, neste ponto, parece ter
assumido que se terá atingido uma crise generalizada. Neste
sentido, com certa insistência são feitas duas afirmações
similares:
Não existem actualmente critérios seguros para distinguir o justo do injusto, o bem
do mal, o belo do feio; Tudo é relativo, subjectivo.
Não existem valores. Tudo depende das circunstâncias e dos
interesses em jogo.
Destas posições facilmente se conclui que os valores que tradicionalmente
eram dados como imutáveis, ou foram postos em causa ou abandonados. O que hoje
predomina, segundo muitos autores são apenas posições relativistas
ou niilistas.
Para explicar esta crise de valores que atravessa
todos os domínios da sociedade são apontadas entre outras, as seguintes razões:
1. A critica sistemática que muitos filósofos, como Karl Marx,
Nietzsche e Freud fizeram aos valores tradicionais.
Karl
Marx argumentou que os valores ( enquanto produtos
ideológicos) não podem ser desinseridos da história e dos
contextos sociais. Os valores dominantes numa dada sociedade
são sempre aqueles que melhor servem a classe dominante na
sua exploração das classes trabalhadoras. Defendeu por isso
a necessidade da destruição de todos os tipos de moral
dominante (burguesa), substituindo-a por uma moral dos
oprimidos (proletários). Nietzsche afirmou por
seu turno que não existiam valores absolutos. Os valores são
sempre produto de interesses egoístas dos indivíduos. Os
valores estão ligados às condições de existência de
certos grupos, justificam as suas hierarquias e mecanismos de
domínio, e mudam sempre que as condições de existência se
alteram. Considera, por exemplo, que a moral ocidental está
assente em valores de escravos, preconizando por isso o aparecimento de
um homem novo, completamente livre, e capaz de expressar a sua
vitalidade sem limites, para além de valores de
arcaicos como o bem e o mal.
Freud mostrará
que os valores morais fazem parte de um mecanismo mental
repressivo formado pela interiorização de regras impostas
pelos pais, e que traduzem normas e valores que fazem parte da
consciência colectiva. |
2. A crise nos modelos
e nas relações familiares. A família é
onde, em princípio, qualquer ser humano adquire os seus primeiros valores.
Ora as estruturas familiares estão em crise, o que se reflecte, por exemplo,
no aumento da dissolução de casamentos, no aparecimento de novos tipos de
uniões (casamento de homossexuais, etc),etc. Por tudo isto, muitos país
manifestam cada vez mais dificuldade em elegerem um conjunto de valores que
considerem fundamentais na educação dos seus filhos.
3. As profundas alterações económicas, cientificas e
tecnológicas que a nossa sociedade moderna tem conhecido. Estas não apenas estimularam o abandono dos valores tradicionais, mas
parecem ter conduzido a humanidade para um vazio de valores.
Cinco
exemplos 1. A promessa que surgiu no século XIX de que a humanidade
caminhava para um era de progresso moral e civilizacional
generalizado, foi completamente posta de parte no século XX,
com duas guerras mundiais, dezenas de milhões de mortos e um
holocausto meticulosamente planeado. O que a humanidade encontrou foi um
progresso limitado, no meio da barbárie.
2. A ideia da ciência como empenhada na verdade e
aperfeiçoamento da humanidade, ficou igualmente comprometida
no século XIX com o envolvimento de inúmeros cientistas na
investigação da armas mortíferas, em cruéis experiências
com seres humanos, etc. O lado negro da ciência tem vindo a evidenciar-se em
todos os domínios (manipulação genética, construção de armas de
destruição maciça, etc). 3. O desenvolvimento económico dos países
tem sido feito à custa da poluição do ar, contaminação da águas, destruição das
florestas, acumulação de lixos, etc. As previsões sobre as consequências
futuras destas acções são aterradoras: o planeta terra está numa rápida
agonia. 4. A sociedade da abundância está longe de ser uma
realidade em todo o planeta. Dois terços da humanidade vivem
abaixo do limiar da miséria. Em alguns continentes, como a
África, assistimos à destruição de populações inteiras
pela fome, guerras, catástrofes naturais, ecológicas, epidemias, etc. Os ricos
estão cada vez mais ricos e os pobres parecem estar condenados à
eterna miséria.
Um milhão de
pessoas sem comida e água no Sul do Sudão.
O apelo da ONU aos países doadores para que ajudem a
combater esta situação conseguiu angariar apenas, até
agora, um por cento do total da soma pedida para
evitar uma tragédia como a fome de 1998, na mesma
região, que causou a morte a centenas de pessoas.
Os rebeldes do Sul desde 1983, na sua maioria animistas e cristãos,
têm lutado por uma maior autonomia do Norte,
maioritariamente muçulmano e árabe. O
conflito já provocou mais de dois milhões de mortos
naquele que é o maior país africano,in jornal Público (8/3/2001)
|
5. A globalização trouxe consigo uma maior
aproximação entre o povos em termos de informação, facto que aparentemente
possibilitaria o desenvolvimento de uma consciência global, desperta para a
questão das desigualdades dos recursos e das
condições de vida entre os seres humanos. Muitos
autores contestam contudo esta interpretação, pois segundo afirmam, a
informação que está a ser difundida à escala global não visa despertar a
consciência crítica das pessoas mas brutalizá-las. A
circulação dos mesmos produtos à escala planetária está a provocar uma
rápida uniformização de hábitos, costumes e culturas entre todos os povos.
Ora os modelos culturais e comportamentais que estão a ser veiculados pelas
grandes potencias mundiais, em particular os EUA, não passam de produtos
culturais acríticos, onde se apela apenas ao consumismo e relativismo de
valores. Tratam-se de produtos culturais destinados a serem consumidos por populações pouco educadas
ou exigentes em termos intelectuais. |
Este
panorama profundamente negro sobre a sociedade que que vivemos está longe de
ser consensual. Muitos autores afirmam que não existe qualquer
"crise", o que se passa é que a sociedade se tornou menos
"rígida" e "monolítica", sendo agora mais
"aberta" e sensível às diferenças individuais, o que muitas
vezes, poderá assumir formas próximas do indiferentismo. Em
todo o caso, uma coisa é certa: os
valores relativistas (particulares, subjectivos) que sustentam este mundo estão
a revelar-se demasiado funestos para a Humanidade no seu conjunto. É
por esta razão que se aponta para a necessidade de se estabelecer novos
consensos em torno de valores que nos serviam de guia para o nosso
relacionamento inter-pessoal e colectivo. Em causa está o nosso futuro
comum.
Carlos Fontes |