Emergência Histórica da Filosofia Universo Sonoro . A Escrita Alfabética . Os Desvios da Tradição
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A antiga Grécia constitui para a cultura ocidental o seu lugar mítico de origem. Quando falamos de algo durável, sólido e profundo em matéria de pensamento, arte e ciência usamos normalmente a Grécia como comparação. |
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A resposta a estas perguntas não é fácil de dar, dado que não sabemos ao certo donde vieram, nem porque escolheram no princípio terras montanhosas e áridas, rochosas e escarpadas da Península Balcânica. Documentos egípcios dão-nos conta da sua fixação por volta do séc. XII. Em vagas sucessivas apossam-se de territórios pertencentes a culturas florescentes como a Cretense e a Micénica, sem que se possamos falar de assimilação ou de continuidade de tradições. No séc. XI verificaram-se dois importantes movimentos migratórios, os Dórios para sul, em direcção ao Peloponeso e os Jónios para o sudoeste da Anatólia. Só a partir do séc. VIII, as informações começam a ser mais seguras. Os gregos estão já em expansão pelo Mediterrâneo, estabelecendo as primeiras colónias nas costas da Ásia Menor, Sicília e o sul da Itália, o que ficará conhecido pela Grande Grécia. Nos fins do séc. VII, nestas primeiras colónias processa-se uma importante alteração política: o regime monárquico é abandonado, sendo substituído por uma forma embrionária de democracia, cujo governo é a expressão da vontade da maioria dos homens livres. Nestas cidades-estado ocorrem outras alterações na vida das suas populações que permitem e suscitam novas maneiras de pensar: o desenvolvimento de uma economia mercantil baseada num vigoroso comércio marítimo; o aparecimento e difusão da moeda (séc. VI); o contacto com outra culturas; um arreigado sentimento de individualidade nascido da própria independência administrativa e legislativa de cada cidade. Tudo se conjugou para que ocorresse uma gradual ruptura com os modos tradicionais de conceber e pensar o Cosmos, e que irá conduzir ao aparecimento da Filosofia. Uma das características do pensamento mítico estava na sua dependência da tradição oral mantida e veículada pelos poetas. Era pela palavra falada que os "mitos" (narrativas) passavam de geração em geração. A importância dos narradores era por isso mesmo decisiva, já que podiam modificar a qualquer momento a história, acrescentando-lhe novos episódios ou adaptando-a simplesmente ao auditório (ouvintes). "A palavra, neste universo sonoro, escreveu Georges Gusdorf, está ligada a um suporte vivo - palavra de alguém, referida por alguém. A única reserva da palavra, o único processo de conservação, é a memória pessoal, extremamente desenvolvida, tal como a memória social, a tradição e o costume. Civilização do diz-se, do rumor, onde a palavra pode tudo - civilização da forma, do segredo, da magia. A autoridade pertence aos antigos, aos velhos, nos quais sobrevive o tesouro da experiência ancestral, ciosamente guardada, mas frágil e ameaçado, porque se aquele que sabe desaparece, já ninguém saberá." conclui este filosofo: "À civilização oral corresponde uma cultura difusa, uma literatura anónima, em que as obras não assinadas pertencem a todos e a ninguém". Grande parte dos mitos foram primitivamente veiculados sob a forma de poemas, sendo desta forma mais facilmente memorizados. Na Grécia, a poesia e os poetas desfrutavam por tudo isto um enorme prestígio: a poesia estava desde há muito ligada à religião, era o seu modo mais expressivo de falar dos deuses, mas também, constituía a base sobre a qual era realizada a educação desde a infância, daí a importância e a difusão que se revestia este imaginário criado pelos poetas. "O poeta, escreve G. M. Bowra, nas sociedades primitivas era olhado como sendo instrumento dum poder que lhe era exterior, mas que o dominava e que falava através dele com a própria voz. Era considerado um profeta, um visionário, um homem que falava várias línguas, um agente de forças invisíveis e desconhecidas." Concluindo: "Não era sem razão que o Oráculo de Delfos proferia as suas mensagens misteriosas em verso, ou que Hesíodo fala de si próprio como sendo o homem que conhece tudo aquilo que existiu, aquilo que existe e o que está para existir. Os gregos aceitavam estes princípios, e aceitavam que a poesia era uma actividade inspirada. Platão tendia a considerar os poetas como possessos, e os próprios poetas pagavam o seu tributo à inspiração quando falavam da Musa, do poder divino que dominava a sua arte". No período mais recuado da história grega avultam duas importantes narrativas míticas em verso - Ilíada e Odisseia - atribuídas a uma enigmática figura - Homero. Elas representavam para os gregos, não só o símbolo da sua unidade cultural enquanto povo, mas igualmente a expressão da sua religião, da sua visão do cosmos, as suas personagens eram verdadeiros modelos de comportamento que se seguia ou se evitava. A maioria os autores situa estes poemas por volta do séc. IX, e teriam sido criados por gerações de aedos ( contadores de histórias ambulantes) que percorriam as cidades gregas, contando as façanhas dos seus heróis comuns e as aventuras dos seus deuses. Exprimindo um mundo mais próximo de nós, mas ainda mítico, destacam-se os poemas de Hesíodo (séc.VIII-VII a.C.) - Teogonia e Os Trabalhos e os Dias. Na Teogonia apresenta-nos uma sistematização dos mitos sobre a origem dos deuses e do cosmo a eles associados. Neste poema destaca-se ainda a narração das várias fases da humanidade, desde um Idade de Ouro inicial até à presente fase de decadência. Este modelo será retomado na filosofia de Platão. Antes de prosseguirmos nesta narrativa sobre as origens da filosofia, vejamos agora um dos factores que mais terá contribuído para o seu aparecimento - a escrita alfabética. Entre o séc. XII e séc. VIII, a maioria dos autores inclina-se para admitir que a Grécia tenha atravessado um período em que a escrita desapareceu. Apenas a "poesia" continuou através da tradição oral a estabelecer a ligação dos gregos com os seus antepassados. Ao contrário de povos como o egípcio, onde a escrita possuía uma longa tradição de carácter sagrado, ciosamente controlada pelos sacerdotes, na Grécia a escrita foi olhada com desconfiança pelas velhas aristocracias, ligadas à tradição oral. A escrita não tinha raízes em solo grego, por isso podia ser vivida de modo muito distinto. A sua escrita foi adoptada dos fenícios, tendo os gregos introduzido significativas modificações de modo a que a mesma cobrisse toda a gama de sons, através de sinais convencionados, mas não excessivos, nem ambíguos. O resultado final foi uma escrita bastante simples, acessível a todos os membros da comunidade, possibilitando-se assim a sua rápida e eficaz utilização. A partir de 720 a.C. aparecem os primeiros documentos (em argila) escritos na linguagem alfabética. A escrita permite desde logo "olhar" a realidade descrita pela tradição de uma forma completamente nova. " A invenção da escrita transformou o primeiro universo humano, permitiu a passagem a uma nova idade mental. Não é exagero dizer, escreve Gusdorf, que ela constituiu um dos factores essenciais para o desaparecimento do mundo mítico da pré-história. A palavra dera ao homem o domínio do espaço imediato; vinculando-o à presença, ela só pode atingir, na extensão e na duração, um horizonte reduzido aos fugazes limites da consciência. A escrita permite separar a voz da presença real, e, assim multiplica os seus efeitos. Os escritos permanecem e, com isso, tem poder de fixar o mundo, para estabilizar na duração, como cristalizam as palavras e dão forma à personalidade, doravante capaz de assinar o seu nome e de se afirmar para além dos limites da sua incarnação. O escrito consolida a palavra. Faz dela um depósito que pode guardar indefinidamente a sua reactivação nas consciências futuras. O personagem histórico expõem-se perante as gerações futuras, relata, sobre basalto, o granito ou o mármore, a crónica dos seus feitos elevados." "Deste modo, conclui Gusdorf, a invenção da escrita liberta o homem do jugo da tradição e do "diz-se". Nasce então uma nova autoridade, a da letra, que substitui o costume, numa ambiencia sagrada. Porque a primeira escrita é mágica, por efeito das suas prestigiosas virtudes".
A grande novidade da escrita na Grécia, consistiu no facto de ela não se revestir de um carácter sagrado, mas humano. Ela é encarada como prática profana, em permanente conflito com os guardiões da tradição. Entre as primeiras coisas a serem fixadas pela escrita na Grécia, contam-se os poemas de Homero. Segundo uma antiga tradição foi o estadista ateniense Pesístrato (605-527 a.C.), o que primeiro teria mandado coleccionar todos os poemas dispersos da "Ilíada" e da "Odisseia". A passagem destes poemas à escrita, não deixou de implicar decisivas mudanças face ao modo como passaram a ser julgados os seus personagens. A crítica da tradição tornou-se mais rigorosa, passou a distinguir-se a verdade da fantasia dos poetas. Onde as rupturas com a tradição foram mais dramáticas, foi na extensão da escrita à esfera do poder. Nas cidades-estado o abandono dos regimes monárquicos, onde o destino de cada um estava marcado pela sua maior ou menor proximidade aos deuses, pela pertença a uma família ilustre, ou pela fidelidade a um chefe, passou a ser determinado a partir de um princípio abstracto que é a lei escrita. A lei impõem-se agora perante a tradição oral. Esta luta entre a lei escrita e a lei apoiada na tradição oral, surge com toda a clareza em obras como a "Antígona" de Sófocles. Nas colónias gregas na Ásia Menor, onde estas mudanças foram muito rápidas, a difusão da escrita é acompanhado pelo aparecimento formas de pensamento muito individualizadas que se afastam da tradição. A filosofia, como veremos, tem aqui a sua origem. Nas obras de Platão, ainda se manterá esta tensão entre a escrita e a tradição oral. As suas primeiras obras, procura através de vivos diálogos transportar para a escrita a linguagem oral, mas nas últimas, começam a surgir longos monólogos. As possibilidades oferecidas pela escrita para o desenvolvimento das ideias de uma forma sistemática, passam a impor-se na concepção destas obras. A expansão da escrita alfabética na Grécia, não foi a única causa que contribuiu para o nascimento da filosofia, mas foi provavelmente uma das mais determinantes. Carlos Fontes
Locais onde nasceram os principais filósofos gregos
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Carlos Fontes