Navegando na Filosofia - Carlos Fontes

 Ciência Medieval e Renascentista ( I )

A cultura grega consagrara dois valores fundamentais: o saber e a razão. O Cristianismo procurou contrapôr aos mesmos a superioridade da Fé (revelada). 

Apesar de o Cristianismo se manifestar por vezes hostil ao legado de culturas anteriores, como a cultura grega, esteve longe de as recusar, antes as assimilou e as transformou de acordo com os seus princípios.

Na cidade de Alexandria, no Delta do Nilo, nos três primeiros séculos da era cristã ocorre uma primeira fusão entre as ideias neoplatónicas e as cristãs.A realidade que se podia ver, tocar e sentir começa a ser concebida como uma parte muito pequena do real. Por detrás dela, emanando-a, existia um mundo fantástico - um mundo invisível -, povoado de seres misteriosos, uns benéficos colaborando com Deus para a realização do Bem, outros eram a expressão de forças maléficos, demoníacos...

Santo Agostinho (354-430), tributário do neoplatonismo, irá realizar uma notável síntese destas tendências. A sua obra influenciará durante muitos séculos o pensamento cristão, nomeadamente no plano filosófico.

Até ao ano 1000 podemos destacar algumas ideias gerais sobre a concepções do mundo e do conhecimento que marcaram profundamente o desenvolvimento da ciência. Em todas elas se revela o mesmo princípio da subordinação do conhecimento à religião.

A ideia que existia um só mundo tendo a Terra no centro, tivera na Grécia prestigiados defensores, nomeadamente Platão e Aristóteles. A Bíblia também tinha expressa esta concepção geocêntrica:

 "No dia em que o Senhor entregou os amorreues nas mãos dos filhos de Israel, Josué falou ao Senhor e disse na presença dos israelitas: Sol, detém-te sobre Gabaon, e tu, ó Lua, pára sobre o vale de Ajalon. E o Sol deteve-se e a lua parou até que o povo se vingou dos seus inimigos. Não está isto escrito no LIVRO DO JUSTO? O Sol parou no meio do céu, e não se apressou a pôr-se pelo espaço de quase um dia inteiro, Josué 10, 12-15.

 
No mundo grego, a ciência estava muitas vezes ligada a certas ideias estéticas e problemas lógicos. A esfericidade da Terra fora muitas vezes sustentada  devido à perfeição que era atribuída a esta forma. Eratóstenes (c.284- c..l92 a.C.), chegou mesmo a calcular com grande precisão o comprimento da circunferência da Terra. Apesar de tudo, o cristianismo mostrou resistências esporádicas a adoptar a concepção da esfericidade da terra. A Bíblia fornecia uma visão muito diversa: 

"Ele está sentado sobre a orbe terrestre, cujos habitantes, diante d'Ele, são como gafanhotos, Ele estende os céus como um véu, e os desdobra corno uma tenda para habitar" ,IsaCas,40,22

No princípio do séc.IV, Lactâncio, preceptor do filho do Imperador Constantino, consagra um livro a ridicularizar "a falsa sabedoria dos filósofos, onde aproveita para atacar a esfericidade da Terra: 

"Para ele era suficiente indicar o absurdo de que existiria uma região em que os homens estivessem de cabeça para baixo e o céu se encontrava debaixo da Terra". 

Ainda no século IV, o Bispo de Gaballa com base na Bíblia , afirmava que o cosmos não era uma esfera, mas sim uma tenda de campanha ou um tabernáculo. Apesar destas ideias, o cristianismo acabou por adoptar a ideia da esfericidade da Terra, limitando todavia a sua habitabilidade ao hemisfério norte.

A hierarquização do cosmos fora defendida por Platão e Aristóteles. O Cristianismo aceitou a ideia na antiguidade clássica muito divulgada. A Bíblia sustentava algo parecido, pois dividia o mundo em três grandes regiões:

"Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem do que quer que seja que está no alto do céu, ou eu baixo, sobre a Terra, ou nas águas debaixo da Terra", Deuteronómio,5,8-9. 

No céu será fixada a "morada" de Deus e dos anjos, e no lado oposto, nas profundidades da Terra, o Inferno.  

"Deixa-me só para que possa ter um pouco de conforto, antes que parta, afim de não mais voltar, para a região das trevas e das sombras da morte, terra de espantosa confusão e trevas, onde a mesma luz é como (aqui) a obscuridade ", Job.lO,20-22.

Quem movia este universo?

"Interroguemos aqui uma boa testemunha da fé' popular do século VI, o mercador Alexandrino Cosmas Indicopleustes, que tinha longamente enfrentado o Oceano indico, donde lhe viera o sobrenome. Parecia-lhe ímpio imaginar que os fenómenos naturais, a começar pela marcha regular dos astros, que marca os dias e as noites, as estações e os anos, fossem devidas a um mero jogo de forças mecânicas. Para de, os corpos celestes recebem os movimentos de certas potências dotadas de razão, anjos lampadóforos. Efectivamente, entre os Anjos, uns são encarregados de pôr em movimento o ar, outros, o Sol, outros a Lua, outros as estrelas, outros ainda produzem as nuvens, as chuvas e outros fenómenos. Porque a tarefa e a lei impostas às multidões angélicas e às Potências consistem em servir o bem-estar e a honra da imagem de Deus, isto e, o homem, e por em movimento todas as coisas, como soldados obedecendo ao Rei ", J. Le Goff.

Neste mundo particularmente sensível ao maravilhoso, à irrupção do sobrenatural no quotidiano, podemos encontrar ao longo de toda a Idade Média, um vasto conjunto de obras sobre as propriedades visíveis e invisíveis das coisas, as suas virtudes, poderes mágicos, milagreiros, ou até a sua simbologia moral. Disto são exemplos os celebres Bestiários e os Lapidários que constituíam repositórios de virtudes mágicas de animais e pedras. Um dos mais importantes enciclopedistas medievais foi sem dúvida, Isidoro de Sevilha (56 0-636).Nas Etimologias, a sua mais conhecida obra, faz uma descrição naturalista, minuciosa de seres fantásticos como um Dragão. O real e o imaginário interlaçam-se.

Oriundos não raro do Egipto, da Síria ou da Pérsia, muitos destes escritos mágico-alquímicos chegam a Europa através dos Árabes, como a célebre Tábua Esmeralda de Hermes Trismesgisto ou o Segredo dos Segredos (séc.II-III), onde se descreve a produção da célebre "pedra filosofal":

"Ó Alexandre quero-te dar um segredo, o maior dos segredos que a divina potência te ajude para acabares teu propósito e para encobrires o segredo. Toma pois a pedra animal e vegetal e mineral, a qual não é pedra nem tem natureza de pedra. Esta pedra por um modo assemelha-se com as pedras dos montes e das minas, das plantas e dos animais, acha-se em todo o lugar, em todo o tempo e em qualquer homem. Ela é convertível ou tornável em qualquer côr, em si contém todos os elementos e chama-se menor mundo. Eu a nomearei por seu nome, para o qual o vulgo chama ovo, isto e, o ovo dos filósofos. Parte-a pois, em quatro partes, e cada uma das partes decompôem-se não igual e devidamente, mas de tal maneira que não se encontre nele, nem divisão nem repugnância e terás o propósito do Deus outorgante, todo este modo é universal. Mas eu o partirei em obras espirituais. Parte-o pois em quatro, por dois modos se faz bem , e sem corrupção, quando tiveres água do ar, e ar do fogo e o fogo da terra, então terás cumprido a arte. Põe pois a substância do ar por descrição, a terra por humidade e quentura, até que se convenham e se ajuntem, sem serem desacordados e se separem, então ajunta-lhe duas virtudes obrantes, água e fogo, e então será a obra acabada. E se meteres água far-se-á branco, e se juntares o fogo, far-se-á vermelho Deus outorgante". Texto adaptado da edição do "Segredo dos Segredos" do Pseudo-Aristóteles (versão do Séc. XV).

A subordinação do conhecimento cientifico à religião marcou durante toda a Idade Média o pensamento científico.

A atitude religiosa neste período pode ser definida por uma palavra: "peregrino" (viator). O peregrino é a figura central e simbólica, do mundo medieval.  Ele considerava a vida terrena como uma viagem, uma peregrinação para a Jerusalém Celeste. A Terra era para ele um sítio estrangeiro, um lugar de desterro, um vale de lágrimas. A sua pátria é o céu. Pelas suas próprias forças ele não a consegue alcançar, está enfraquecido pelo pecado de Adão. O único auxílio que aqui encontra é Cristo, o Salvador, e a graça da igreja. Com base nesta convicção, amplamente divulgada, viveram os homens medievais e o seu filosofar realiza-se neste panorama.

Esta desvalorização da vida terrena, trouxe consigo uma desconfiança pelos dados dos sentidos, e em particular o conhecimento obtido através da experiência. O único fundamento para a verdade acaba por ser a Bíblia, a palavra de Deus. Tudo concorria para isso.

A Idade Média foi também o período histórico da consagração das três grandes religiões baseadas em livros sagrados: o Judaísmo na "Tora ,o Cristianismo na "Bíblia" e o Islamismo no "Corão". O princípio, o fim e o sentido de tudo, está  escrito nestes livros. A Verdade encontra-se neles, basta para tanto saber ler, interpretar a palavra divina. O desenvolvimento destas religiões é indissociável das diferentes leituras e conflitos de interpretações gerados em torno destes textos.

A descoberta dos mistérios da Natureza tende a desvalorizar a observação minuciosa da natureza, para enfatizar a descoberta de um sentido novo nos textos sagrados.

Para este subordinação do conhecimento à religião contribuiu também, a desagregação do sistema de ensino da antiguidade clássica. Quando no séc. V se desagrega o Império romano do Ocidente, as instituições de ensino romanas, começaram a ser substituídas por mosteiros. Os mosteiros tornaram-se nos principais centros difusores do conhecimento. Os clérigos serão também durante muito tempo os únicos letrados. Doravante o ensino é cada vez mais mediado pela interpretação da Bíblia.

Carlos Fontes

Continuação: Séculos XI a XV

 

 

Carlos Fontes

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