Sermão de S. Paulo entre ruinas (1744), pintura de Giovanni Paolo Panini (1691-1765)
O sermão da Sexagésima do Padre António Vieira, pregado na Capela Real, em 1655, é uma obra prima da arte retórica de todos os tempos. Profundo conhecedor desta arte, da qual foi professor no Brasil, reflecte neste sermão sobre o objecto, técnicas, alcance, limitações e finalidade da mesma. Para entendermos o seu discurso, temos que o despir literalmente das suas roupagens e artificios obrigatórios do tempo e do lugar onde o mesmo foi proferido.
Roteiro de leitura
Capitulo I : Apresentação do Orador e do seu Oficio
António Vieira começa por apresentar o orador, a importância do seu tema e a sua competência para o tratar:
a) Humildade.
Perante uma "ilustre" (capacitada) e "numeroso" auditório, apela à sua compreensão e benevolência na avaliação do seu discurso. Trata-se de um recurso retórico muito usado pelos oradores.
b) Importância do tema.
"Ouçamos o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que é caso que me levou e trouxe de tão longe" . Do Evangelho tira o exemplo, em Lucas, cap.8, que compara o sermonista ao semeador. A referência à sua pessoa, que veio do Brasil para Portugal, mostra também a importância que confere ao tema que dá a conehcer ao auditório.
c) Objetos de Acordo.
Evoca sobre uma questão central o seu acordo com o auditório, ao dizer que a a vocação dom orador (sermonista), deve ser uma vocação e um oficio para a vida.
"Assim arguis com muita razão, e eu também assim o digo".
d) Experiência
O orador vai falar daquilo que vivenciou. O que trás ao auditório é o seu testemunho da maior das contrariedades e situações trágicas que alguém pode viver no seu oficio. Não se lamenta, nem se arrepende de nada do que fez, antes se mostra convito que esse era o seu caminho, missão.
"A maior desgraça do semeador do nosso Evangelho não foi maior. A maior é a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aaqui padeceu o trigo, padeceram lá os semeadores".
"Não me queixo nem o digo, Senhor, pelos semeadores, só pela sera o digo, só pela seara o sinto".
António Vieira traça expõe as exeigências deste oficio, nomeadamente o ter de falar os mais diversos auditórios, vivenciar até situações dramáticas. Mostra que os resultados são multiplos e incertos, exigindo do orador arte e persistência para persuadir todas as criaturas no mundo.
Capitulo II: Tema e Pré-requisitos
introduz a questão da Avaliação dos resultados dos discursos que tem como objectivo persuadir (sermões).
Faz duas importantes advertências: O conteúdo da mensagem por mais importante que seja não garante só por si a atenção dos ouvintes. Para a eficácia dos discurso persuasivo também pouco importa o número de oradores.
"Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus?"
"Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregações, nem tantos pregadores como hoje."
O pré-requisito básico da comunicação é o seguinte: o orador aprenda e domine a arte da retórica, e o ouvinte aprenda a ouvir, isto é, saiba escutar e domine os códigos de linguagem do orador.
A matéria do sermão será pois a de aprender a pregar e aprender a ouvir.
Sermão de S. João Baptista (1566), de Pieter Bruegel.
Capítulo III: Auditório
O problema que coloca a seguir é saber quais garantias de um discurso eficaz persuasivo.
Está garantido que Deus com a sua graça irá iluminar o entendimento dos ouvintes? António Vieira, apoiando-se nas conclusões do Concilio de Trento afirma que Deus não falta nem pode faltar neste domínio. Não é um génio maligno. No entanto adverte que as faculdades dos ouvintes dadas por natureza (Deus) encontram-se desigualmente repartidas. Uns estarão mais aptos do que outros a receberem a mensagem. É por isso que afirma que há ouvintes bons e outros maus. O auditório nunca é homogeneo, também porque a intenção com que os ouvintes se dispoem a escutar é muito diversa. Dá exemplos de dois tipos de ouvintes, cuja eficácia discursiva é muito incerta:
- Os de entendimentos agudos. Estes "vêm só ouvir subtilezas, esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também picar a quem os não pica".
- Os de vontade endurecida. Os que não se deixam afectar pelas palavras, nem se mostram dispostos a mudar os seus comportamentos.
Apesar das dificuldades afirma que a melhoria dos resultados depende sobretudo do orador. Um bom orador será sempre capaz de produzir um algum efeito em que o ouve, não importa quem.
Capítulo IV: Orador
Neste capíttulo, aborda a condição fundamental de um orador: a pessoa. A credibilidade do orador assenta em grande parte no seu percurso de vida, nas suas ações que praticou.
"Sabem, Padres pregadores, porque fazem pouco abalo os nossos sermões? - Porque não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Porque convertia o Baptista (S.João Batista) tantos pecadores ? - Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos".
Capítulo V: Estilo
Os estilos dos discursos, como afirma António Vieira, variam muito com o tempo. No seu tempo, identifica dois estilos:
- Um violento, trágico, ameaçador dos ouvintes.
- Outro escuro, obscuro, "negro boçal e muito cerrado" (Cap.V).
Recomenda um estilo natural, centrado no apelo à razão. Chama à atenção para a importância da "composição", "ordem", "Harmonia" e " Sequência" do discurso.
Capítulo VI : Matéria
O orador deve tratar apenas um assunto em cada discurso para não dispersar atenção dos ouvintes, ajustando o seu vocabulário ao local e ao auditório (ouvintes).
Capítulo VII: Ciência
O orador deve dominar a matéria que está a dissertar, por ter sido mesma trabalhado e meditado. O orador não pode falar sobre aquilo que não conhece ou limitar-se a repetir as palavras e dias de outros. Se não o fizer, o discurso soa a falso, tende a deturpar o sentido das palavras do vrerdadeiro autor, torna-se numa farsa ou comédia.
Capítulo VIII: Voz
Recusa que o orador brade ou grite para se fazer ouvir. A sua voz deve ser moderada.
"E não há dúvida que o praticar familiarmente e o falar mais ao ouvido que aos ouvidos, não só concilia maior atenção, mas naturalmente e sem força se insinua, entra, penetra e se mete na alma."
Capítulo IX: Função do Discurso ( I )
As palavras de um orador devem produzir algum efito em que o ouve, uma mudança de comportamento, percepção das coisas. O discurso que não produz nenhum efeito é pura lisonja, o que tem alguma eficácia inquieta, modifica quem o ouve. Um bom orador não é aquela que diz o que agrada ouvir ao auditório, mas aquele que o desperta, incomoda, o faz tremer...
Capítulo X: Conclusão
Um bom orador não se identifica pela fama que alcançou, mas pela mudança que provocou em que o ouviu. Este deve ser o critério para avaliar o discurso persuasivo.
Carlos Fontes
S. Paulo pregando (1735), pintura de Giovanni Paolo Panini