Métodos Biográficos

Carlos Fontes

No método biográfico, o objecto de estudo é o indivíduo, na sua singularidade. Este é o aspecto incontornável e marcante desta metodologia. O levantamento de histórias das vida pode fazer-se com base em biografias, autobiografias, mas igualmente em diários, portólios e outras fontes de informação similares. É enorme a riqueza e complexidade da informação recolhida. Esta é a razão pela qual este tipo de estudos são também designados de intensivos, em oposição, aos de natureza extensiva, que recorrem a técnicas como os questionários estandartizados destinados a grupos mais ou menos extensos.

Evolução dos Métodos Biográficos

A Escola de Chicago

As histórias de vida como objecto de pesquisa científica, deram origem a um notável conjunto de estudos logo a seguir à Iª. Guerra Mundial. A forma de encarar as histórias de vida, muda então radicalmente. O relato de um percurso singular, torna-se numa janela aberta para entender o Outro. O primeiro estudo de referência foi o de W.I.Thomas e F. Znaniecki, intitulado “The Polish Peasant in Europe and América (1918-1920). Mas as contribuições mais significativas para esta nova perspectiva ficaram a dever-se à Escola de Chicago que influenciada por Robert Park, produziu um notável conjunto de estudos, onde é patente o interaccionismo simbólico de George Herbert Mead (1863-1931). Mead trouxe para as ciências sociais uma nova maneira de pensar o comportamento social dos indivíduos. O individuo  deixa de ser visto como algo unitário, uma “pessoa” que existe como se fosse completamente independente dos outros, mas sim como um ser complexo com várias dimensões diferentes, construído a partir das suas relações com aquilo que ele designa por “outros significantes”, cujo comportamento têm importância social ou consequências para nós. As acções humanas inserem-se assim, no interior de um processo comunicativo. Para que se dê comunicação, cada indivíduo deve conhecer a maneira de reagir do outro perante os seus actos. No interior indivíduo divide-se entre um “Eu” ( a capacidade de espontaneidade) e o “Me” (expressão interiorizada do Outro). O pensamento e a introspecção tornam-se assim, num diálogo interno entre o “Eu” e o “Me”. Desta forma, compreendendo as representações do indivíduo compreendemos as representações do grupo social em que o mesmo se movimenta. A tradicional separação entre o individuo e a sociedade, seria assim superada pelo  estudo das suas representações. A partir da subjectividade, acedia-se à  objectividade.

É muito significativo que a maioria dos trabalhos da Escola de Chicago se tenha orientado para a compreensão dos comportamentos desviantes em meios urbanos. As representações destes individuos espelham percursos fortemente marcados por estigmas sociais, facilmente apreensíveis.

Das Instituições Totais à Construção Social da Realidade

Entre meados dos anos trinta e os anos cinquenta, os método biográfico é secundarizada na pesquisa social, em favor dos métodos quantitativos, mais económicos. A nova etapa dos estudos biográficos surge associada à obra de  Erwin Goffman- “The Presentation of Self in Everyday Life” (1956). Este sociólogo parte à descoberta do comportamento dos individuos em “instituições totais”, onde se ocorrem experiências extremas, como nas prisões, hospitais, conventos, campos militares, barcos de pesca à baleia, colégios com internato. Compreendendo o comportamentos dos individuos nestas “instituições”, tornar-se-ía mais fácil  perceber as acções dos homens em situações menos brutais, devido ao facto de nelas os padrões de comportamento serem mais uniformes e contrastantes. A teoria de Gofffman é contudo mais complexa. Ele parte do pressuposto que o comportamento humano tem pouco de instintivo, ele é essencialmente o resultado de um processo de socialização. A longo da vida de um indivíduo as mudanças do seu comportamento reflectem sobretudo os diversos grupos que integra, e as novas regras e  padrões que adopta. Seguindo o seu percurso e as suas reacções em diferentes situações, descobrimos os diversos grupos sociais. A dimensão individual do comportamento dilui-se na sua dimensão social. Erwin Goffman acabou por influenciar outros sociólogos, como Berger e Luckmann.

Durante os anos sessenta, o arranque da denominada ”observação participante” trouxe, novas contribuições para o reforço das metodologias qualitativas, entre elas, os métodos biográficos.

Ressurgimento dos métodos biográficos

O ressurgimento dos métodos biográficos, ocorreu por alturas do 9º Congresso Mundial de Sociologia (1978). Mais de uma vintena de trabalhos são então apresentados sobre histórias de vida, e onde estão patentes inúmeras linhas de pensamento. Os meios sociais inquiridos são multiplos. Encontram-se desde trabalhos com camponeses, trabalhadores sazonais, operários, empregados, industriais, elites, mas também, jovens delinquentes, e outros grupos similares.  Nos  anos oitenta assiste-se à consagração dos métodos biográficos, sendo de destacar à proliferação de estudos biográficos sobre os professores.

      Questões Epistemológicas

            O método biográfico coloca um vasto conjunto de problemas sobre a sua cientificidade que não  podemos ignorar.

-          Será este método adequado à análise da realidade social?

-          Como podemos aceder ao social a partir daquilo que é único e irrepetível, a subjectividade de cada individuo?

            A forma de ultrapassar esta e outras questões tem assentado num conjunto de pressuposto filosóficos sobre a sociedade que nem sempre são explicitados. Pelas leituras que efectuamos, duas concepções de sociedade estão quase sempre pressupostas, as quais determinam, em última análise, a forma como são encaradas as histórias de vida.

a)      Concepção de uma sociedades atomizada. As acções e os processos sociais são entendidas como agregações complexas de acções individuais. A tarefa do investigador é neste caso, a de reconstituir a sociedade a partir das diversas perspectivas dos seus membros. “Narrando a sua história de vida, ou segmentos dessa história, (o entrevistado) dá a sua versão dos acontecimentos, fornecendo assim a sua diferença específica” (Eduardo Freitas). As histórias de vida permitem, desde modo, captar as várias perspectivas dos intervenientes num dado acontecimento, descobrindo novos detalhes ignorados por outros intervenientes. Este material, embora seja recomendado pelos historiadores para a compreensão de certos aspectos básicos do comportamento humano ou das instituições,  segundo Bogdan, não é todavia utilizado pelos mesmo material histórico. A razão prende-se com o problema da sua validação, as quais só são possíveis através de um cruzamento-confronto dos vários discursos sobre o mesmo objecto.

 

b)      Concepção de uma sociedades especular. As acções e processos individuais são entendidas como “reflexos” ou “homologias” de um dado grupo social ou de uma dada sociedade. A vida dos indivíduos é assim portadora de um sentido que os ultrapassa. Interpretar uma história de vida é descobrir, nesta perspectiva, um grupo social ou mesmo uma sociedade. Ferrarotti surge como o principal teórico desta corrente, sustentando que a biografia é em si mesma uma “micro-relação social, através da qual se pode ler uma sociedade” (Gonçalves).Não toda a sociedade, mas uma parte da mesma, isto porque, cada individuo não totaliza directamente uma sociedade global, mas sim, a mediação do seu contexto social, dado pelos grupos restritos de pertença, os grupos primários, tais como, a família, os grupos de trabalho, a vizinhança, a classe social (Durão).

É evidente que estas duas concepções de sociedade, pressupõem diversos entendimentos das histórias de vida, como ficou demonstrado.

Histórias de Vida na Formação de Professores

As histórias de vida sempre tiveram um papel formador ao longo dos tempos. As populares histórias dos santos na Idade Média, ou as história de figuras públicas nos nossos dias desempenham uma poderosa função como modelos de comportamento. Numa sociedade onde as ideologias e os valores estão em crise, a vida vivida, concreta, tende a ser assumida como a única coisa em que se pode confiar.

Emergência dos Estudos Biográficos na Educação

Desde meados dos anos oitenta, tem crescido a popularidade dos estudos sobre a vida dos professores. Várias razões tem sido apontadas para explicar a emergência deste fenómeno.

Para alguns autores, como Maria Helena Cavaco, a explicação está na crise que atravessam os grandes sistemas teóricos, o que terá provocado a necessidade de repensar tudo de novo. Os grandes quadros conceptuais, centrados nos sistemas de ensino foram, por este motivo, substituídos por abordagens centradas em protagonistas singulares, como os professores. É a partir deles que se procura compreender o próprio sistema mais global. Neste sentido passou-se a estudar, por exemplo, quais são os seus percursos profissionais e o modo como vivem a sua profissão, e em termos mais genéricos, a forma como compatibilizam a tríade - Homem-Cidadão-Profissional.

Outros, como Andy Hargreaves, atribuem este fenómeno às consequências sociais da pós-modernidade. Esta ao imprimir uma orientação social para o individualismo, acentuou as tendências narcísicas e de auto-referencialidade. Interpretes destas tendências sociais profundas, muitos investigadores dos fenómenos educativos face a um mundo caótico procuraram descobrir o sentido da educação nas biografias e narrativas pessoais dos professores.

Mais conjunturais, outros, como Rui Gomes, associam o aparecimento deste fenómeno, nos anos oitenta, ao generalizado mal estar revelado pelos professores. Foi a necessidade de compreender as razões destes sentimentos que terá desencadeado estes estudos.

Carlos Fontes

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