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"Difícil é educá-los ?"

 

David Justino, antigo ministro da Educação, de um dos piores governos que Portugal já conheceu, publicou recentemente um importante livro de sobre a educação dos portugueses.

Começa com um problema sem solução à vista: Todos os governos em Portugal estão condenados a falhar na educação, porque os alunos portugueses são dificilmente educáveis. Quanto maior é o número de alunos, maior é o fracasso e a diminuição na qualidade da educação. O problema não é de hoje, data pelo menos da primeira metade do século XIX.

1. Resultados

Desde o século XIX que os portugueses registam os piores resultados escolares na Europa. Os progressos realizados no ensino em Portugal revelam-se sempre insuficientes para superar o atraso histórico.

a) Escolarização da População

Um dos grandes fracassos correntemente atribuído ao regime democrático, implantado em 1974, foi não ter conseguido vencer o atraso do país em termos educativos. Os avanços foram muito significativos, mas insuficientes para vencer o atraso face aos restantes países europeus. As qualificações dos trabalhadores portugueses são das mais baixas. As taxas de insucesso e abandono continuam elevadíssimas. O quadro geral é deprimente.

b) Testes Internacionais

Portugal ocupa invariavelmente o fundo da tabela nos estudos comparativos internacionais sobre os resultados escolares. 

O primeiro efectuado entre 1994-95, envolvendo 40 países, os resultados a matemática e ciências colocavam os alunos portugueses muito longe dos seus congéneres europeus, e apenas acima dos alunos da República Islâmica do Irão, da Colômbia , Kuwait e África do Sul. Foi tal o choque que os governos portugueses deixaram de integrar estes estudos comparativos.

A partir de 2000, o Governo decidiu voltar a integrar de novo o conjunto de países que realizam estes estudos comparativos. Os resultados de 2000, 2003 e 2006 (Projecto Pisa), incidindo sobre a matemática, ciência e leitura, confirmaram os péssimos resultados anteriores. Na Europa os alunos portugueses continuaram a ocupar o fundo da tabela.

c) Dificuldades Cognitivas

Diversos estudos, desde 2000, tem procurado identificar as principais deficiências dos alunos portugueses. Todos são consensuais num ponto: Não sabem pensar.  

Apenas apresentam melhores resultados nos saberes que exigem menor elaboração cognitiva, e em que se limitem a reproduzir conhecimentos, a aplicar procedimentos de carácter rotineiro e fazer raciocínios simples.  

As suas dificuldades aumentam de forma desproporcionada quando se exige raciocínios mais complexos na resolução de problemas, ou a aplicar conhecimentos adquiridos em situações pouco usuais. 

Apresentam enormes dificuldades na compreensão e interpretação de textos escritos não narrativos, assim como na resolução de problemas matemáticos.

Em suma, os alunos portugueses revela uma capacidade de abstracção claramente reduzida, não sabem pensar (p.75).

Percebe-se o incómodo de um ex-ministro da educação português a dar conta destas conclusões. Pior era impossível.  

2. Razões do enorme fracasso

As causas destes maus resultados escolares variam de acordo com investigadores. O ex-ministro indica algumas das mais referidas, embora não as tenha abordado com a profundidade que as mesmas exigiriam, preferindo centrar-se em generalidades sobre o sistema educativo.

2.1. Investimentos na Educação

Desde o século XIX estes maus resultados escolares são atribuídos a uma alegada falta de investimento público na educação. O argumento tem sido desmentido através de comparações internacionais. Por mais que o Estado português invista na educação, os resultados são sempre mediocres.

No século XIX, por exemplo, a oferta de escolas era frequentemente ser superior à procura. Muitas escolas publicas tinham que fechar portas porque os alunos não as frequentavam. Nas últimas décadas, estudos comparativos mostram que Portugal em percentagem do PIB é dos países que mais investe na educação do seus cidadãos, sem todavia conseguir superar os atrasos que acumula neste domínio. Os investimentos na educação nunca pararam de aumentar, mesmo nos períodos em que se registou uma diminuição no número de alunos. 

É fácil encontrar outros países na Europa que investem muito menos, mas que registam resultados incomparavelmente superiores. Mais dinheiro para a educação, não significa necessariamente maiores e melhores resultados escolares.

2.1.1. Rendimento das Famílias

Os estudos comparativos mostram que rendimento das famílias portuguesas, também não pode ser usado para explicar fracos os resultados escolares. Outros países europeus com rendimentos muito inferiores, registam resultados escolares consideravelmente superiores.  

2.2. Formação dos Professores

O nível de qualificação dos professores em Portugal foi quase sempre dos mais elevados na Europa, apesar dos resultados escolares dos alunos serem habitualmente  mediocres.

Este facto era constatado pelo relatório TALIS (Teaching and Learning International Survey), promovido pela OCDE, que fez um estudo comparativo das condições de trabalho e do ambiente de ensino e aprendizagem em escolas de 23 países, entre 2003 e 2008: Portugal era o segundo país com "professores mais qualificados".

Era no entanto o terceiro país com a percentagem mais elevada de professores em escolas que não tiveram nenhuma aferição de desempenho e também o terceiro país com mais elevada percentagem de professores em escolas que não foram alvo de qualquer avaliação externa.

Em todo o caso este nunca foi o factor que poderia explicar os atrasos verificados na escolaridade da população portuguesa. Não deixa de ser irónico que os maiores progressos, por exemplo, na alfabetização tenham ocorrido numa fase da Ditadura (anos 40 e 50) de menor exigência na qualificação dos professores primários.

2.3. Rácio Professor/Alunos

Cada professor em Portugal, quando comparado com outros seus colegas europeus, tem um número reduzido de alunos. Foi quase sempre assim. Em 1960 havia 1 professor para 30 alunos. Em 1985 o rácio era de 1 para 15. Dez anos depois havia diminuído para 1 para 10 alunos. Nos países com excelentes resultados escolares os rácios eram muito superiores. Por volta de 2000 na Finlândia era de 1/15, Holanda 1/16, Japão 1/16,  Alemanha 1/17, etc. 

2.4. Sociedade Rural 

Os maus resultados históricos dos alunos portugueses têm sido atribuídos ao facto de Portugal ter sido até à poucas décadas uma sociedade rural pouco urbanizada. Esta explicação não resiste a uma simples comparação com outros países europeus. A alfabetização iniciou-se desde o século XVI na Escandinávia, Europa Germânica, Suíça, Escócia e Norte da França em regiões marcadamente rurais e ainda pouco urbanizadas. 

Na Escandinávia a massificação do ensino ocorreu, por exemplo, no quadro de uma sociedade rural tradicional e também ainda pouco urbanizada.  

Os avanços da alfabetização em Portugal não foram uniformes de norte a sul. No Norte, onde predomina o minifúndio,  foi sempre mais alfabetizado que o sul, onde predomina o latifúndio (1). Algo semelhante pode observar-se em Espanha, França ou na Itália. 

As diferenças de género têm igualmente expressão geográfica: os homens a norte sempre foram mais alfabetizados que os do sul. No entanto, as mulheres do sul eram mais alfabetizadas do que as do Norte.   

2.5. Coesão e Afirmação Nacional

No século XIX, muitos países europeus que integravam povos com culturas e línguas diversas, serviram-se da educação como um meio de integração social, impondo uma cultura e língua única. Trata-se de um processo que ocorreu em países como a Itália, Alemanha, França, Hungria, Roménia, Espanha e muitos outros europeus, mas também nos EUA. 

A escolarização da população, numa época de exaltação nacionalista, foi assumida um factor identitário das nações. No século XX, os chamados países socialistas serviram-se também da educação como um instrumento de integração e afirmação ideológica, obtendo excelentes resultados na alfabetização das suas populações. Os resultados escolares nestes países, como vimos, foram desde o século XIX superiores aos registados em Portugal. 

Portugal desde o século XV que não têm estes problemas. O país constituiu-se como um Estado independente no século XII, definiu as suas fronteiras no século XIII, quando o português se impôs como língua oficial. No final do século XIV revela uma enorme consciência nacional. Em finais do século XV, acaba com a diversidade de religiões tornando-se mais homogéneo em termos culturais. 

Apesar de importante este factor está longe de explicar os maus resultados dos alunos portugueses.

2.6. Influência da Religião

a) Protestantes e Católicos

É uma evidência que nos países onde predominam os protestantes (evangélicos), desde o século XVI, se verifica um progresso económico muito mais rápido e sustentável do que o verificado nos países católicos. Max Weber atribuiu a causa deste desenvolvimento à "ética protestante" que valorizava o trabalho e o lucro. 

Na educação as diferenças são igualmente significativas. A evangelização dos protestantes privilegiou a leitura dos textos bíblicos sem intermediações, reforçada pela convicção que se um crente se queria a salvar devia assumir a responsabilidade de estudar a Bíblia. Desta forma o protestantismo constituiu um poderoso estimulo à alfabetização das populações e ao reconhecimento social da educação. 

Países protestantes, como a Dinamarca, Alemanha, Holanda, Escócia, Suécia e Suíça, em 1850, apresentavam taxas de analfabetismo inferiores a 30%. A Inglaterra aproximava-se também deste valor, com 33%. Nos países católicos o analfabetismo foi sempre muito mais elevado, registando apenas melhores resultados em regiões onde a presença de protestantes era significativa como no Norte da França, Bélgica ou no norte da Irlanda. 

b) A excepção portuguesa entre os países católicos

Entre os países católicos europeus, Portugal registou desde 1850 os piores resultados escolares, nunca conseguindo vencer o atraso ao longo de todo o século XX.. 

Analfabetismo nos países católicos europeus

Portugal Espanha Itália  França Bélgica    Irlanda
1850 Mais de 75% Mais de 75% Mais 75%s  40-50% 45-50%. 45%
1900 78,6 % 56% 48% 20% 20% 20%
1950 40 % 16% 20% 3-4% 2% 2%
2000 7,8% 0 0 0 0 0

Não é possível descartar nestes resultados a influência do catolicismo, agravado no caso português pelas características específicas que aqui assumiu a Igreja Católica. A conversão à força dos judeus em 1497 deu-lhe o "monopólio das consciências" sob a protecção do Estado. O essencial do trabalho clerical centrou-se na censura das ideias vindas do exterior e na perseguição dos que quebravam a barreira da censura.

O facto de Portugal ter fronteiras apenas com a Espanha, cuja Igreja era ultra-reaccionária, contribuiu para este isolamento. Os padres portugueses sem necessidade de enfrentarem qualquer combate doutrinário, acabaram por se limitarem a uma formação teológica muito elementar, não tendo que se esforçar muito para exercer o seu "ofício divino". A "clientela" de crentes estava assegurada.  

O resultado foi uma Igreja que desde a segunda metade do século XVI se veio mostrou pouco aberta ao estudo e promoção da própria cultura cristã,  nomeadamente das obras dos grandes pensadores cristãos. Com raras excepções, a maioria dos padres revelavam uma profunda ignorância dos aspectos mais complexos da doutrina cristã. Os crentes foram afastados da leitura dos textos sagrados ou do conhecimento de importantes obras doutrinárias. Uma tradição que se só foi quebrada nas últimas décadas quando em Portugal se começaram a difundir outras crenças religiosas. 

É curioso constar que os resultados escolares dos portugueses só têm paralelo até aos ano 30, com o que se verificava nos países cristãos ortodoxos do leste da Europa. Uma situação rapidamente alterada com o fim do analfabetismo nesses países, em consequência das mudanças políticas que neles se verificaram.

2.7. Reconhecimento Social da Educação

A maioria das famílias portuguesas sempre deu pouca importância à educação dos seus filhos. As competências adquiridas nas escolas ao longo do século XIX e primeiras décadas do XX, foram sempre assumidas como dispensáveis, sem grande utilidade. A verdadeira escola, diziam, era a da Vida. Estudar para quê ?

Embora a escolaridade obrigatória de 4 anos tenha sido estabelecia, em 1844, nenhum governo conseguiu impor esta obrigatoriedade.  Os alunos que frequentavam as escolas eram escassos face à população existente em idade escolar. Mesmo assim, a maioria dos que frequentavam as escolas raramente concluíam o ciclo inicial de estudos, pois os pais não tardavam em retirá-los.   

Nesse sentido, os progressos da alfabetização da população foram sempre muito lentos. A escolaridade de 4 anos só foi atingida nos anos 80 do século XX, cerca de 140 anos depois de ter sido decretada. A escolaridade de nove anos, decretada em 1986, só 25 anos depois é que conseguiu atingir quase os 100% de escolarização. Fruto destes sucessivos atrasos, em 2000, Portugal contava ainda com 7,8 % de analfabetos na sua população.

Apesar de todos os progressos realizados, a maioria das famílias portuguesas ainda continua a dar pouca importância à educação, perpetuando a mesma desvalorização social da educação que se observava no século XIX. A forma como o manifestam é que variou:

- O conhecimento continua a ser desvalorizado, em favor do ócio. Inúmeros pais mostram-se indiferentes quando os seus filhos abandonam as escolas, ou as frequentam sem qualquer aproveitamento. No século XIX muitos colocavam-nos a trabalhar, hoje mantêm-nos na mais completa inactividade.

-  Os professores tornaram-se o alvo de um crescente número de agressões verbais e físicas, numa completa impunidade. As escolas são assumidas frequentemente como locais de diversão onde tudo é permitido. Pais e alunos reclamam pelos seus direitos, mas recusam todos os deveres.

Estamos perante um fenómeno sociocultural, que só pode ser explicado numa perspectiva histórica.  

3. Persistências Culturais

Não pondo de parte alguns dos factores anteriores, parece-nos que a explicação para os maus resultados escolares, reside também na persistência de certos traços de uma mentalidade ligada a um Império Colonial exorbitante para as dimensões do país. Um dos seus traços fundamentais foi justamente a pouca importância que a partir da segunda metade do século XVI se passou a dar ao conhecimento. Nem sempre, é preciso recordar, foi assim.

Durante o século XV e 1ª. metade do século XVI o conhecimento foi extremamente valorizado em Portugal. Os descobrimentos geográficos foram suportados, como é sabido, por notáveis progressos alcançados por muitos portugueses na matemática, cosmografia, cartografia, nautica, medicina e tantos outros ramos do saber. Thomas Moro, na Utopia, exalta o saber dos portugueses, na figura de um marinheiro. 

A verdade é que a partir da segunda metade do século XVI, a principal preocupação do Estado não foi com o conhecimento, mas sim com a consolidação dos seus domínios ultramarinos, em especial o Brasil. A coragem no cumprimento das ordens superiores, tornou-se um valor muito mais importante que o saber. A necessidade de conhecimento circunscreveu-se a uma pequena minoria de dirigentes. 

A grande massa da população foi usada como simples recurso para a defesa e colonização dos territórios ultramarinos. Não se esperava da mesma outra coisa que não fosse obediência à vontade do rei ou do Estado. A Igreja Católica também não a estimulou a ler e interpretar textos, muito pelo contrário. A leitura e interpretação da palavra de Deus continuou a ser monopólio da Igreja. No alto dos púlpitos os padres, em consonância com as necessidades do Estado, pregavam o dever de obediência.

Para além destes dois grupos, formou-se um terceiro, muito numeroso, de parasitas sociais, constituído essencialmente por nobres, alto clero e outros dependentes do Erário Público, que ostensivamente desprezavam o trabalho. As suas actividades de eleição eram comer, divertirem-se e fornicarem, acabando por se tornar num modelo social a que aspiravam largos extractos da população. O trabalho e o conhecimento eram desta forma desvalorizados. Os raros que procuram algum saber, caem naquilo  que Borges Grainha denominou "Fidalguia Literária", isto é, o cultivo de um saber diletante sem qualquer relação profícua com a sociedade que formamos e construímos.

No século XIX, após a independência do Brasil (1822), as prioridades do Estado continuaram a ser as mesmas, agora centradas na colonização africana, muito menos estimulante. A minoria dirigente, continuou a olhar para a maioria da população como um recurso do Estado para a defesa e povoamento das colónias. A obediência há muito interiorizada, enquanto des-responsabilização, atingiu formas extremas de conformismo, resignação. 

Os vários governos que tentarem contrariar esta mentalidade, depararam-se com um profundo atavismo e alheamento cívico da população, habituada que estava a cumprir ordens cujo sentido não compreendia, nem se manifestava interessada em saber. Estudar para quê ? 

Carlos Fontes

Navegando na Educação

 

Notas:

(1) As diferenças na alfabetização entre o norte e o sul de Portugal que se constatavam no século XIX, persistem ainda nos nossos dias. As regiões que hoje registam as mais elevadas taxas de insucesso escolar são as do Interior Centro, o Alentejo, o Algarve e o arquipélago da Madeira (Cfr. Estado da Educação - Portugal 2010- Percursos escolares CNE.2010).