Carlos Fontes

Católicos e Protestantes, Jesuitas, S. Roque, António Vieira e René Descartes

A primeira construção da Companhia de Jesus em Lisboa, a igreja de São Roque, sede da ordem em Portugal, após várias hesitações começou a ser construida em 1569, sendo dada por concluída em 1590.

O Padre António Vieira, pouco depois do seu regresso do Brasil (1641), integrado numa comitiva que vinha afirmar a adesão da Bahia ao novo rei D. João IV, proferiu aqui alguns do seus mais notáveis sermões. O espaço é hoje visitado por milhares de alunos de escolas de todo país não apenas por este facto, mas também pela estrutura arquitetónica da Igreja-auditório, concebida de forma a privilegiar a oratória dos padres jesuitas. No entanto a Igreja de S. Roque pode e deve ser entendida numa perspectiva mais ampla.

No dia 31 de Outubro de 1517, vespera da festa católica de Todos os Santos, o agostinho, teólogo e pregador Martim Lutero (1483-1546) dá a conhecer, na porta da Igreja de Wittemberg, as suas 95 teses sobre as indulgências e o cristianismo, abrindo uma profunda rutura com a Igreja romana (católica) (3). A data passou a assinalar o inicio da reforma protestante. Pintura de Ferdinand Pauwels (1872).

1. Contexto Internacional

A construção da Casa-Igreja de S. Roque (1569-1590) deve ser enquadrada no contexto do conflito que opôs católicos a protestantes. Um conflito que não se confina à Europa, mas alastra a todo o mundo.

Estados católicos, como o português, liderados pelo espanhol recorrem a todos o meios para contenter a expansão do protestantismo.

O estabelecimento da Inquisição em Portugal (1536) ou o Concílio de Trento (1545-1563) não pode ser desligado deste conflito politico-religioso.

2. Jesuitas

A criação da Companhia de Jesus, em 1534, por um grupo de estudantes da Universidade de Paris, liderados por Inácio de Loyola, representa uma resposta estruturada ao movimento protestante. A congregação, reconhecida pelo papa em 1540, através de um muito organização centralizada, disciplinada e muito eficiente, procura não apenas defender as poições da Igreja Católica nos pulpitos das igrejas, mas moldar o pensamento dos crentes através do ensino nos seus colégios.

A retórica, ou arte de bem falar, torna-se numa competência particularmente desenvolvida dada a "propaganda da fé" que jesuitas terão que difundir nos púlpitos das igrejas ou nas aulas dos colégios.

O Aristotelismo, com a sua concepção de um universo hierarquizado e geocentrico, é também a base do seu ensino nos colégios. Defendem até ao limite uma concepção do mundo que se opõe a que a ciência moderna estava a criar, com as descobertas, por exemplo, de Galileu Galilei.

3. Jesuitas em Portugal

Entre os co-fundadores da Companhia de Jesus conta-se um português - Simão Rodrigues (1510-1579) - que se tornará no primeiro provincial da ordem em Portugal.

Estabelecem-se em Portugal em 1540, sendo-lhes confiado o ensino pré-universitário (4). Este facto dá-lhes um enorme poder, na medida que podem moldar mentalidades e o saber científico que aqui era difundido.

Colégios jesuitas.

Os jesuitas entre 1540 e 1759, data da sua expulsão, irão criar em Portugal e nas suas antigas possesões ultramarinas um vasta rede de colégios. Três magnificos exemplos em Portugal:

Na cidade de Coimbra, em 1542, será criado o primeiro colégio jesuita do mundo, cuja influência no ensino na universidade de Coimbra foi enorme. No Colégio de Jesus foram elaborados os célebres manuais de estudo - o Curso Conimbricense ou Curso de Filosofia do Colégio das Artes - usado em muitos colégios de todo o mundo. René Descartes aprendeu filosofia por eles.

Em Lisboa, abrem em 1553 um colégio na Mouraria, trasladado em 1579 para o enorme Colégio de Santo Antão (atual Hospital de S. José).

Em Évora foi-lhes construido o Colégio do Espírito Santo (1551-1559) que está na origem da universidade nesta cidade (1559).

Igrejas.

A construção da Igreja de S. Roque (1569-1590), reveste-se de particular significado, não só porque será a sede dos jesuitas em Portugal, mas porque o modelo desta igreja será replicado até meados do século XVIII, em inúmeras igrejas jesuitas em Portugal, Brasil e na Ásia.

A Igreja de S. Roque, seguindo o modelo das igrejas dos colégios de Coimbra na Rua Sofia, tem apenas uma única nave. O seu interior é concebido como se fosse um auditório, uma praça pública, no qual se destacam dois pulpitos. Era neles que o pregador, na linguagem vernácula e não em latim, discursava sobre os mais variados temas, fossem eles religiosos, políticos ou mundanos. As oito capelas, intercomunicantes, inicialmente com decorações muito simples, tinham um programa iconográfico que refletia a concepção social e religiosa dos jesuitas em Portugal.

Entre outras preciosidades que podem ser contempladas, destaca-se a capela de S. João Baptista, encomendada em 1742 por D. João V, aos artistas italianos Nicola Salvi e Luigi Vanvitelli.

Nesta igreja estão sepultados entre outros, Simão Rodrigues de Azevedo, que introduziu os jesuitas em Portugal (no corredor da sacristia) e Francisco Suaréz (1648-1717).

Cristina da Suécia e René Descartes, pintura de Nils Forsberg (1884)

4. Cristina da Suécia, René Descartes e António Vieira

O século XVII continuou a ser marcado pelo conflito entre católicos e protestantes, divindo toda a Europa. Na Suécia, Cristina (1626-1689), a filha do rei Gustavo Adolfo, defensor do protestantismo, depois de ascender ao trono inclina-se para o lado dos católicos.

Em 1649 convence o filósofo René Descartes a deslocar-se à Suécia, para lhes expor a sua filosofia e os fundamentos da religião católica. Descartes morre um ano depois na Suécia envenenado...

O primeiro padre católico que estabelece contactos regulares com Cristina é um jesuita português - António Macedo, capelão da legação portuguesa em Estocolmo (1651). É ele que serve de intermediário entre Cristina e Roma.

Cristina, em 1654, acaba por abdicar do trono e converte-se ao catolicismo. Abandona a Suécia e refugia-se em Roma (1656), onde passa a viver.

António Vieira

Agora temos que falar do padre António Vieira. Figura maior da cultura portuguesa. Nasceu em Lisboa junto à Sé, foi para o Brasil com seis anos. Estudou no Colégio de Jesus de São Salvador da Bahia, não sem algumas dificuldades iniciais (1). Integrou a Companhia, onde foi missionário e professor, nomeadamente de retórica em Olinda

Regressou a Portugal em 1641 para vir defender o novo rei (D. João IV) , restaurador da independência nacional. Entre 1641 e 1645 vive na Casa dos Jesuitas em S. Roque. Destaca-se desde logo como orador, sendo os seus sermões muito elogiados.Intervém ativamente na vida politica do país, nomeadamente através dos seus sermões. Sem ser um embaixador do rei, informalmente, em várias capitais da Europa, como Roma, Paris, Amesterdão ou Londres estabelece contactos, concebe projectos políticos e negócios (2).

A sua defesa dos indios, dos cristãos-novos e dos judeus, a sua denúncia da escravatura dos negros (abusos) trouxe-lhe inúmeros inimigos. Em 1667 acaba por ser condenado pela Inquisição em Portugal, sendo obrigado a exilar-se em Roma, onde se destaca também como orador.

Cristina da Suécia, chama-o para seu orador e fica por ele encantada. O papa Clemente IX autoriza que António Vieira seja nomeado capelão particular de Cristina.

Passam a ter encontro frequentes no Palácio Riario, onde Cristina residia. Para os célebres encontros que a mesma organiza da Academia Reale, António Vieira, escreve textos lidos por Cristina e figuras destacadas do Vaticano. A relação entre os dois é interrompida em 1675, quando Clemente X, o absolveu da Inquisição e ele tem que regressar a Portugal. Vieira regressa ao Brasil, onde prepara a versão final dos seus sermões, e nos últimos anos se dedica a escrever "Clavis Prophetarum".

Quando Cristina morre, em 1689, foi sepultada na Basílica de S. Pedro, segundo consta, a pedido do Padre António Vieira. Roma ficou com uma rainha. A Suécia continuou protestante. A verdade da "Arte de Pregar" de Vieira, no século XVIII, cede lugar à verdade do "Método de Estudar" de Luis António Verney, os tempos são de mudança na forma de pensar. Os jesuitas são expulsos de Portugal (1759). A campa número 14, onde Vieira foi sepultado na antiga Igreja do Colégio dos Jesuitas (atual catedral Basílica da Bahia) é aberta no final do século XVIII e os seus ossos atirados ao lixo. Como diria Vieira, tudo é efémero na vida humana.

Carlos Fontes

 

Estátua do Padre António Vieira junto à Igreja de S. Roque. Outubro de 2017.

Notas:

(1) O padre André de Barros, primeiro biografo de Vieira, escreve que na antiga Sé da Bahia, despontaram os seus dotes oratórios garças à interseção de Nossa Senhora das Maravilhas. Perante a dificuldade de entender e acompanhar os estudos jesuiticos Vieira pediu ajuda à virgem. Não tardou a sentir um "estalo" na cabeça, reve lando-se a partir daí num notável aluno e orador. (Cfr. Vida do Apostólico Padre António Vieira da Companhia de Jesus, chamado por antonomasia o Grande, Lisboa, 1746). A Imagem daa virgem foi levada de Portugal para a Bahia em 15. Na altura o seu culto era muito popular em Portugal. A mais antiga referência que conhecemos é uma lenda que diz que S. Bernardo no século XII terá dado esta imagem à igreja de Marvila em Santarém (Marvila é uma corruptela de Maravilha). O culto continua vivo em várias igrejas de Portugal, como na Povoa do Lanhoso.

(2) António Vieira realizou estas viagens e contatos numa altura em que a Santa Sé e a Espanha estava a ser suplantada pelas novas potências emergentes - a Holanda, a França e a Inglaterra -, que vieram definir um novo quadro de relações internacionais, baseado na reciprocidade entre Estados. Conceitos que Vieira ignora (Cfr. António Vieira e a Diplomacia do seu Tempo, Pedro Cardim, in, O Padre António Vieira e o Mundo da Lingua Portuguesa, Coord. ....., Lisboa, 2008.

As ideias que defendeu, com base nestes contactos internacionais, segundo um dos seus críticos - Teófilo de Braga - foram todas recusadas, porque contrárias aos interesses de Portugal, incluindo dos portugueses no Brasil (cfr. Hist. da Literatura Portuguesa.Os Seiscentistas. A única importância que tinham devia-se à "lábia" de Vieira.

(3) Lutero no seu oficio de confissão, como padre de Vitemberge, assistia aos penitentes a apresentarem-se no confissionário munidos de uma indulgência que lhes retirava todos os pecados a troco de dinheiro, que era canalizado para custear as obras que a Igreja realizava em Roma.

As 95 teses de Lutero desencadeiam uma ruptura no seio da Igreja Cristão com reflexos globais, não apenas em termos religiosos, mas também culturais e politicos que podemos sintetizar da seguinte forma:

a) Desarticula o poder do papado e do clero, nomeadamente reconhecendo o sacerdócio universal dos crentes. Cada crente é um sacerdote face a Deus.

b) Desvaloriza o valor da tradição, atribuindo apenas o papel central às Escrituras. Lutero, para tornar acessivel a Biblia a todos os crentes inicia a sua tradução do latim para o alemão em 1521, tarefa que conclui em 1534. Defende que todos os crentes deviam também saber ler, uma posição revolucionária ao tempo.

c) Aboliu o papel dos santos como intermediários com Deus, papel que atribui apenas a Cristo. A simplicidade dos templos luteranos contrasta com o luxo e ostentação das igrejas saídas da Contra Reforma (Católica).

(4) A emergência dos jesuitas deve ser enquadrado na reação da Igreja católica ao movimento da reforma luterana, ao assumir a escola como um poderoso instrumento de evangelização. O ensino das escolas jesuiticas foi unificado em 1599, com a instituição do Ratio Studiorum, um conjunto de regras escolares que se converteram no curriculum de ensino católico da Idade Moderna.