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Multiplicam-se os sinais de que na Europa
está em curso uma mudança: tradições de outros povos não-europeus que
antes eram toleradas, em nome do respeito pelas diferentes culturas estão a
ser combatidas. Os pretextos são muitos. Em França, promete-se uma luta sem tréguas contra a poligamia, a
excisão feminina, etc. Na Inglaterra, os casamentos entre primos, prática
pelos vistos muito comum entre os muçulmanos paquistaneses, é agora
apontada como causa de um elevadíssimo número de casos de degenerescência
biológica evitáveis e portanto intoleráveis. Em Espanha, o alvo são os
casamentos de jovens combinados pelas famílias e a morte das jovens que
não os aceitam. As comunidades visadas são quase sempre as
muçulmanas.
No plano teórico, filósofos como Jean Baudrilard, falam
agora de uma Europa cuja cultura se está a desintegrar. O coro dos que
repetem estas ideias está a aumentar dia após dia. Como se chegou aqui
?
1.Europa Triunfante
A história que os europeus contaram de si
mesmos durante séculos foi marcada pelo orgulho. Possuíam uma notável
cultura e civilização, cuja matriz greco-latina e cristã era considerada
superior a qualquer outra existente. Esta presunção legitimou a sua
expansão pelo mundo, a conquista e colonização de outras regiões e
povos.
As histórias de muitos povos europeus, como
os portugueses, espanhóis, ingleses, holandeses, franceses ou italianos,
está repleta de acções que segundo os nossos valores actuais seriam
criminosas. Miguel Angelo, por exemplo, na Capela de Sistina (Vaticano) representou
a escravatura como uma obra civilizadora, pois permitia resgatar os
"selvagens" à barbárie em que viviam. Estes actos, embora na
aparência bárbaros, eram entendidos pelo europeus na época como necessários ao
progresso dos povos primitivos, etapas históricas que tinha que ser percorridas.
2. Europa Envergonhada
A partir dos anos 60 do
século XX, os europeus passaram a ver com outros olhos o seu passado. Onde
antes viam gestos civilizadores passaram a ver actos bárbaros. A
escravatura tornou-se uma questão incomoda, um acto vergonhoso. A expansão
uma vasta acção de rapina. O
colonialismo uma acção negativa, que só serviu para destruir povos,
culturas, etc. As guerras e fomes que ocorriam nas antigas colónias
europeias, após a sua independência, foram sentidas como produtos da
acção europeia. A sua maléfica influência só serviu para
degenerar os diferentes povos. Criar as condições para a proliferação da
miséria actual. Se os europeus não tivessem ido para África, América,
Ásia ou Oceânia o mundo seria muito melhor.
Foi com um enorme sentimento
de culpa, que os europeus receberam milhões de imigrantes provenientes das
antigas colónias. Toleraram hábitos e costumes, muitas vezes contrários
aos seus valores. Faziam-no porque não se sentiam capazes de impor nada a
outros. O respeito pelas diferenças, denominado multiculturalismo, era a
única atitude possível quando não se quer assumir nenhuma posição. Cada
um continuaria com as suas tradições, vivendo nos seus espaços próprios,
limitando-se os poderes públicos a manter esta frágil convivência de
culturas.
A causa de tanta vergonha dos
europeus face ao seu passado, não está para muitos no exterior da própria
Europa, mas nas matanças que no seu interior ocorreram nos últimos
duzentos anos. Os exemplos são muitos, a começar pelo sistemático
etnocídio praticado pelos espanhóis em Olivença,
passando pelas invasões francesas, às duas guerras mundiais,
matanças no País Basco e na Irlanda do Norte, terminando na Bósnia-Herzegóvina,
temos que concluir, com George Steiner
que os europeus se suportam mal. A maior parte do tempo tem andado a matar-se.
3. O Dedo Muçulmano
A emergência do fundamentalismo islâmico
foi apenas um passo neste processo histórico. Os europeus foram globalmente
identificados como a causa da desgraça da humanidade. A única salvação
possível é a barbárie, isto é, a morte indiscriminada dos
"infiéis". O 11 de Setembro em Nova Iorque é o símbolo por
excelência, mas não o único, desta matança. O que os europeus
constataram foi também outra coisa, ainda mais dramática: é que a sua
cultura está longe de encantar os filhos de muitos dos seus imigrantes das
suas ex-colónias. Mas nãos e pense que são só os que tem origem não
europeias. Em Novembro de 2005, os belgas viram uma das suas cidadãs, com
raízes europeias, matar-se matando ocidentais e simbolicamente fazendo o
mesmo a tudo aquilo que a Europa e
os ocidentais significam. A comunicação ocidental procurou diminuir os
estragos provocados, mostrando que a
mesma estava contaminada pelo vírus do islamismo.
4. Reacção
Europeia
Se os europeus continuam a não manifestar
grande orgulho no seu passado, deixaram de ser indiferentes perante as
sistemáticas acusações que são alvo. Estamos a assistir a um crescente
movimento de defesa dos valores e da cultura
europeia. Em França, o governo decretou que nas escolas se ponha fim à
visão negativa que estaria a ser dada história da sua colonização em
África. Os professores são agora obrigados a exaltar os aspectos positivos
do colonialismo francês, nomeadamente na Argélia, ignorando ou
relativizando matanças, escravatura, etc. Na Grã-Bretanha, e em muitos
outros países, cresce a recusa em ajudar os africanos. De acordo com o novo
discurso, a culpa da sua miséria não se deve à escravatura e exploração
que foram vítimas no passado pelos europeus, mas a eles próprios que
nada fazem para acabar com os governos corruptos e incompetentes que
os governam. Nos EUA, partindo-se do pressuposto que a "guerra de
civilizações" é uma inevitabilidade dos nossos tempos,
defende-se a definição das fronteiras a nível mundial, entre os
"civilizados" e os "bárbaros" (muçulmanos e outros
não ocidentalizados).
Face a este panorama, não é de estranhar
que a ONU tenha cada vez mais dificuldade em angariar apoios para milhões
de pessoas que morrem à fome em todo o mundo.
5. De Camões a Fernando
Pessoa, passando por Kant
Este debate não é novo em Portugal. Há
muito que os poetas, na primeira nação europeia que se expandiu para fora
do velho continente, defendiam um nova concepção visão para este
problema.
A perspectiva europeia tradicional,
protagonizada no século XVI, por Luís de Camões era muito clara nos seus
propósitos. Ao longo dos dez cantos d`Os Lusíadas (1572), expõe a
missão história dos europeus: a conversão dos não-ocidentais aos seus
valores e religião. O cristianismo afirma-se como a única religião
universal, excluindo todas as outras. Os portugueses foram os primeiros a abrir este
caminho para esta acção de conversão. Deram o exemplo e depois deles
outros povos europeus os seguiram (espanhóis, holandeses,
ingleses, franceses, etc). O modelo de homem Camões é o de um cristão,
convicto da superioridade da cultura europeia e da necessidade de a
expandir. Em nenhum momento o poeta questiona esta missão, mesmo quando
aponta os sacrifícios que a mesma implica.
Camões e Homero No Canto Nono d`Os
Lusíadas, Camões introduz simbolicamente uma diferença radical na
maneira dos portugueses (cristãos) encararem outros
povos.
Na Odisseia, Homero impede
que o herói - Ulisses -, se misture ou se deixe encantar.
Ulisses para não se deixar seduzir pelas sereias tapa com cera os
ouvidos, e faz-se acorrentar ao mastro. Simbolicamente rejeita-se
assim o cruzamento entre povos, a miscigenação.
No Canto Nono, na célebre
"Ilhas dos Amores" , os navegadores, incluindo Vasco da
Gama, não apenas se deixam seduzir, mas procuram a sedução,
terminando numa orgia com as ninfas. Camões afirma desta forma
simbólica que a miscigenação ( e a fornicação com outros povos)
faz parte integrante da maneira dos portugueses viverem a expansão e
a difusão dos cristianismo pelo mundo. O sexo esteve sempre presente na epopeia
dos portugueses. |
Quando os europeus haviam afirmado o seu
poder à escala global, E. Kant, na Alemanha, define assim o Homem do Futuro: cosmopolita, sem pátria e sem uma cultura nacional. O
homem é assim reduzido na sua diversidade. Este é o preço que terá que
pagar para evitar os conflitos entre os povos, as guerras. Reagindo contra
esta visão iluminista, o século XIX acaba por mergulhar num conflito de
nacionalismos. O Ideal do homem kantiano, é retomado por algumas ideologias
de esquerda que prometem criar
um Homem Novo (internacionalista). O resultado foi a criação de
regimes totalitários que apregoavam o internacionalismo proletário.
Fernando Pessoa, entre as duas guerras
mundiais que marcaram o século XX, retoma na Mensagem a epopeia de
Camões. Rompe com o modelo do Homem Europeu camoniano, mas também com o
homem desenraizado de Kant. O que os europeus deviam de assumir como missão
histórica era criar um homem múltiplo, plural - Um híbrido, produto de
todas as culturas, todas as civilizações.
O Homem de Fernando Pessoa não é cristão como o de Camões,
nem desenraizado com o de Kant, mas
cristão-muçulmano-judeu-ateu-cosmopolita e tudo o mais que a sua
"alma" for capaz de conter. Reconhecendo-se como múltiplo e não
uno, está aberto aos vários mundos. Não se trata de defender o
multiculturalismo, onde cada povo é remetido para o seu gueto, mas a miscigenação
universal. Um projecto posto em prática à escala planetária pelos
portugueses, mas interrompido no século XIX pelos movimentos racistas que
brotaram no seio da Europa. "É Hora! " de cumprir esta missão, afirma o poeta.
Carlos Fontes
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